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Baudolino
encontra Nicetas Coniates
«(…) Ó mãe, antes vestida de ouro e de púrpura imperial, agora
imunda e macilenta e privada de teus filhos, como pássaros prisioneiros numa
gaiola, não encontramos uma forma de deixar
esta cidade que foi nossa, nem a força para nela permanecer, mas enredados no
erro, vagamos como estrelas errantes! Senhor Nicetas, falou Baudolino, disseram-me
que os gregos falavam muito e de tudo, mas não imaginava que chegassem a tanto.
O que importa agora é tirar o nosso rabo daqui. Posso ficar a salvo no bairro
dos genoveses, mas deves sugerir o caminho mais rápido e seguro para o Neórion,
porque esta cruz que trago no peito protege a mim e não a ti: à nossa volta
essa gente perdeu a luz do intelecto, e, se me virem com um grego prisioneiro,
irão achar que vale alguma coisa e hão-de levá-lo embora. Conheço um bom caminho,
mas não pelas estradas, disse Nicetas, e terias de abandonar o cavalo... Vamos
abandoná-lo, disse Baudolino, com tanto desprezo que causou admiração em
Nicetas, que não sabia ainda o bom preço com o qual conseguira seu ginete. Nicetas
permitiu que o ajudasse a levantar, tomou-o pela mão e aproximou-se, furtivo,
da Coluna Sudatória. Olhou em volta: por toda a amplidão do templo, os
peregrinos, que, vistos de longe, moviam-se como formigas, estavam ocupados com
as dilapidações e não faziam caso dos dois. Ajoelhou-se atrás de uma coluna e
enfiou os dedos na fissura de uma placa no assoalho. Ajuda-me, disse a
Baudolino, juntos conseguiremos, talvez. E, de facto, após algum esforço a
placa se moveu, revelando uma entrada escura. Há alguns degraus, avisou
Nicetas, entrarei primeiro porque sei
onde pôr os pés. Fecharás depois a pedra sobre ti. E o que faremos agora?,
perguntou Baudolino. Vamos descer, disse Nicetas, e depois encontraremos às
cegas um nicho, dentro dele há tochas e um acendedor. Uma bela cidade, Constantinopla,
e cheia de surpresas, comentou Baudolino enquanto descia às cegas por aquela
escada em forma de caracol. Pena que esses porcos não deixaram pedra sobre
pedra. Esses porcos?, perguntou Nicetas. Mas não és um deles? Eu?, admirou-se
Baudolino. Eu não. Se aludes a esta vestimenta, eu a tomei emprestada. Quando
eles entraram na cidade, eu já estava dentro das muralhas. Mas onde estão essas
tochas? Calma, faltam ainda alguns degraus. Quem és, como te chamas? Baudolino
de Alexandria, não a do Egipto, que se chama agora Cesareia, ou que talvez não
exista mais, porque alguém já lhe ateou fogo, como em Constantinopla. Entre as
montanhas do Norte e o mar, perto de Mediolanum, conheces? Conheço. Certa vez
as muralhas foram destruídas pelo rei dos alamânios. Pouco depois, nosso
basileu deu-lhes dinheiro para ajudar a reconstruí-las. Isso mesmo, eu estava
com o imperador dos alamânios antes de sua morte. Tu o encontraste quando
estavas atravessando a Propôntide, há uns quinze anos aproximadamente. Frederico,
o Enobarbo. Um grande e nobilíssimo príncipe,
clemente e misericordioso. Jamais agiria como estes... Quando
conquistava uma cidade ele também não era indulgente. Chegaram, finalmente, aos
pés da escada. Nicetas encontrou as tochas e ambos, mantendo erguidos sobre a
cabeça dois fachos flamejantes, percorreram um longo canal, cujas paredes
transudavam água, até que Baudolino viu com efeito o ventre de Constantinopla,
onde, quase que praticamente debaixo da maior igreja do mundo, abria-se,
invisível, outra basílica, uma selva de colunas que se perdiam na escuridão
como muitas árvores de uma floresta lacustre, emergindo das águas. Era uma
basílica ou igreja abacial completamente invertida, pois até mesmo a luz, que
mal iluminava os capitéis, que desenhavam na sombra arcos muito altos, não se
originava das rosáceas ou dos vitrais, mas do assoalho aquoso, que reflectia a
chama, que os visitantes movimentavam.
A cidade é toda atravessada por cisternas, disse Nicetas. Os
jardins de Constantinopla não são uma dádiva da natureza, mas resultado da
arte. Mas, como vês, a água chega apenas até a metade da perna, porque foi
usada quase que inteiramente para apagar os incêndios. Se os conquistadores
destruíssem também os aquedutos, todos morreriam de sede. Normalmente não se
pode caminhar aqui, é preciso ter um barco. Mas a água segue até o porto? Não,
ela pára muito antes, mas conheço passagens e escadas, que a fazem terminar noutras
cisternas, e outras galerias, de modo que, senão
exactamente até o Neórion, poderemos caminhar debaixo da terra até ao
Prosphórion. Porém, disse angustiado e como se lembrasse apenas naquele momento
de outro problema, não posso ir contigo. Mostrarei o caminho, mas depois terei
de voltar. Preciso salvar minha família, que está escondida numa pequena casa,
atrás de Santa Irene. Meu palácio, parecia desculpar-se, foi destruído no
segundo incêndio, o de agosto...» In Umberto Eco, Baudolino, 2001, tradução de Marco
Lucchesi, Editora Record, Brasil, 2010, ISBN 978-857-799-002-3.
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