Cortesia
de wikipedia e jdact
(…) Se os literatos e os artistas
sempre se sentavam em torno de mesas comuns, os homens de ciência almoçavam sozinhos,
como eu. Porém, depois de ter tido um vizinho de mesa por algumas vezes, você
acaba travando conhecimento com ele. Meu primeiro conhecido foi o doutor Du
Maurier, indivíduo odiosíssimo a ponto de se perguntar como podia um psiquiatra
infundir confiança aos seus pacientes exibindo uma cara tão desagradável. Um rosto
invejoso e ressentido de quem se considera em eterno segundo lugar. De facto,
ele dirigia uma pequena clínica para doentes dos nervos em Vincennes, mas sabia
muitíssimo bem que sua instituição de tratamento jamais gozaria da fama e das
rendas da clínica do doutor Blanche, mais célebre, embora Du Maurier murmurasse
sarcástico que, trinta anos antes, ali se internara um certo Nerval segundo ele,
poeta de algum mérito que os cuidados da famosíssima clínica Blanche levaram ao
suicídio. Outros dois comensais com quem instaurei boas relações eram os
doutores Bourru e Burot, dois tipos singulares que pareciam irmãos gémeos,
vestidos sempre de preto, a roupa quase com o mesmo corte, os mesmos bigodes
negros e queixo glabro, com o colarinho sempre um tanto sujo, fatalmente,
porque em Paris estavam em trânsito, dado que exerciam na Ecole de Médecine de
Rochefort e vinham à capital somente por alguns dias a cada mês, a fim de acompanhar
as experiências de Charcot.
Como, não teremos alho-porro
hoje?, perguntou um dia Bourru, irritado. E Burot, escandalizado: não teremos
alho-porro? Enquanto o garçom se desculpava, eu intervim, da mesa vizinha: mas
eles têm excelentes barbas-de-bode. Eu até as prefiro ao porro. Depois
cantarolei, sorrindo: tous les légumes au clair de lune étaient en train de
samuser... Et les passants les regardaient. Les cornichons dansaient en rond, les
salsifis dansaient sans bruit...
Convencidos, os dois comensais
escolheram o salsifis. E dali começou uma convivência cordial, por dois dias ao
mês. Veja, monsieur Simonini, explicava-me Bourru, o doutor Charcot está
estudando a fundo a histeria, uma forma de nevrose que se manifesta por várias
reacções psicomotoras, sensoriais e vegetativas. No passado, era considerada
fenómeno exclusivamente feminino, resultante de distúrbios da função uterina,
mas Charcot intuiu que as manifestações histéricas são igualmente difundidas
nos dois sexos e podem incluir paralisia, epilepsia, cegueira ou surdez,
dificuldade de respirar, falar, engolir. O colega, intervinha Burot, ainda não
disse que Charcot pretende ter elaborado uma terapia que cura os sintomas dessa
enfermidade. Eu iria chegar lá, respondia Bourru, melindrado.
Charcot escolheu o caminho do
hipnotismo, que até ontem era matéria para charlatães como Mesmer. O s
pacientes, submetidos à hipnose, deveriam evocar os episódios traumáticos que
estão na origem da histeria e sarar ao tomarem consciência deles. E saram? Esse
é o ponto, monsieur Simonini, dizia Bourru. Para nós, o que muitas vezes ocorre
na Salpêtrière mais parece teatro do que clínica psiquiátrica. Entenda bem, não
estou pondo em questão as infalíveis qualidades diagnósticas do Mestre...» In
Umberto Eco, O Cemitério de Praga, Biblioteca Digital, Editora Record, tradução
de Joana Melo, 2011, ISBN 978-850-109-284-7.
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