domingo, 14 de junho de 2020

Trópico de Capricórnio. Henry Miller. «Diversas vezes, de tantos em tantos anos, estive na iminência de fazer essa descoberta, mas, caracteristicamente, consegui sempre fugir aos encartes»

jdact

«(…) No meu azedume, procuro muitas vezes razões para os condenar, a fim de melhor me condenar. Sim, porque eu também sou como eles, em muitas coisas. Durante muito tempo pensei que escapara, mas à medida que o tempo passa verifico que não sou melhor, que sou até um bocadinho pior, pois vejo mais claramente do que eles jamais viram e, contudo, sou impotente, incapaz de modificar a minha vida. Quando olho para trás, para o já vivido, tenho a impressão de que nunca fiz nada de minha livre vontade e sim, sempre, por pressão de outros. Ê costume considerarem-me um tipo aventureiro, mas nada poderia estar mais longe da verdade. As minhas aventuras foram sempre casuais, foram-me sempre impostas, foram sempre mais suportadas do que empreendidas. Sou da própria essência desse altivo e fanfarrão povo nórdico que nunca teve a mínima noção da aventura, mas que, não obstante, devastou a Terra, a virou do avesso, espalhando por toda a parte ruínas e relíquias. Espíritos inquietos, mas não aventureiros. Espíritos atormentados, incapazes de viver no presente. Vergonhosos cobardes todos eles, incluindo eu. Há apenas uma grande aventura. E essa é para o interior, rumo ao eu, e para essa não contam tempo nem espaço, nem tão-pouco feitos. Diversas vezes, de tantos em tantos anos, estive na iminência de fazer essa descoberta, mas, caracteristicamente, consegui sempre fugir aos encartes. Quando tento encontrar uma boa desculpa para isso, só consigo pensar no ambiente, nas ruas que conhecia e nas pessoas que as habitavam. Não sou capaz de me lembrar de nenhuma rua da América, nem de nenhuma pessoa moradora em tal rua, que pudesse conduzir alguém à descoberta do eu. Percorri as ruas de muitos países do mundo, mas em lado algum me senti tão degradado e humilhado como na América. Penso em todas as ruas da América reunidas e formando uma imensa cloaca, uma cloaca do espírito para a qual tudo é aspirado e levado na enxurrada para a mer… eterna. Sobre essa cloaca o espírito do trabalho agita uma vara mágica; irrompem lado a lado palácios e fábricas, fábricas de munições e de produtos químicos, siderurgias e sanatórios, prisões e manicómios. Todo o continente é um pesadelo que causa a maior miséria ao maior número. Fui um deles, uma entidade isolada no meio da maior congregação de riqueza e de felicidade (riqueza estatística e felicidade estatística), mas nunca conheci nenhum homem que fosse verdadeiramente rico ou verdadeiramente feliz. Eu, pelo menos, sabia que era infeliz e pobre, que estava fora do ritmo e da linha. Era essa a minha única consolação, a minha única alegria. Mas não chegava. Teria sido melhor para a minha paz de espírito, para a minha alma, se tivesse manifestado a minha rebelião abertamente, se tivesse ido para a cadeia por causa dela e se lá tivesse apodrecido e morrido. Teria sido melhor se, como o louco Czolgosz, tivesse abatido a tiro algum born presidente McKinley, alguma alma insignificante e bondosa como ele que nunca fizera o mínimo mal a ninguém. Sim, porque no fundo do meu coração havia assassínio: queria ver a América destruída, arrasada de alto a baixo. Queria ver isso acontecer por pura vingança, para castigo dos crimes cometidos contra mim e contra outros como eu, que nunca foram capazes de erguer a voz e exprimir o seu ódio, a sua rebelião, a sua legítima sede de sangue.
Era o produto maldito de um solo maldito. Se o eu não fosse imperceptível, o eu acerca do qual escrevo há muito teria sido destruído. A alguns isto poderá parecer uma invenção, mas seja o que for que eu imagine tenha acontecido, aconteceu realmente, pelo menos a mim. A história poderá negá-lo, uma vez que não representei qualquer papel na história do meu povo, mas mesmo que tudo quanto digo esteja errado e imbuído de preconceitos, de despeito e de malevolência, mesmo que eu seja um mentiroso e um envenenador, mesmo assim é a verdade e terá de ser engolida». In Henry Miller, Trópico de Capricórnio, 1939, Editorial Presença, colecção Obras Literárias Escolhidas, 2009, ISBN 978-972-234-097-7

Cortesia de EPresença/JDACT