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de wikipedia e jdact
«(…) A mim mesmo desagrada ficar
ruminando demoradamente tais misérias: por isso, desejando agora deixar de lado
aquelas que posso oportunamente evitar, direi que, estando nossa cidade em tal
situação, quase vazia de habitantes, certa terça-feira pela manhã, conforme fiquei sabendo por pessoa digna de fé, na venerável
igreja de Santa Maria Novella, onde não havia quase mais ninguém, sete donzelas
assistiam aos divinos ofícios em trajes lutuosos, como a tal momento convinha;
eram elas unidas entre si por amizade, vizinhança ou parentesco, nenhuma delas
passara dos vinte e oito anos nem estava abaixo dos dezoito, sendo todas sérias,
de sangue nobre, formosas e dotadas de bons costumes e elevada dignidade. Seus nomes
eu declararia na forma devida, caso não tivesse boas razões para deixar de fazê-lo,
e as razões são as seguintes: não quero que, ouvindo no futuro as coisas que
narraram (e que seguem adiante), alguma delas venha a sentir-se envergonhada,
visto que hoje são um tanto estritas as leis que regem o divertimento, ao passo
que então, pelos motivos acima descritos, eram relaxadas, não só para a idade
delas, como também para idades muito mais maduras; também não quero dar ocasião
para que os invejosos, sempre prontos a criticar toda e qualquer vida louvável,
deslustrem de algum modo a honra das valorosas senhoras com palavras
indecorosas. No entanto, para que adiante seja possível entender sem confusão aquilo
que cada uma disse, pretendo designá-las com nomes ajustados no todo ou em
parte às suas respectivas qualidades: a primeira, que era a mais velha, será
chamada Pampineia; a segunda, Fiammetta; Filomena será a terceira; e a quarta,
Emília; Lauretta será o nome da quinta; e o da sexta, Neifile, sendo a última
chamada Elissa, não sem razão.
Estas, sem serem
levadas por propósito algum, mas sim pelo acaso, reuniram-se numa das partes da
igreja e, sentadas quase em círculo, depois de vários suspiros, deixaram de
rezar pais-nossos e começaram a conversar sobre as condições da época e de
muitas e várias coisas. Depois de algum tempo, como as outras se calassem,
Pampineia começou a falar da seguinte maneira:
Minhas caras senhoras
já terão muitas vezes ouvido dizer, assim como eu, que quem usa honestamente
sua razão não comete injúria contra ninguém. Dita a razão natural que todos os que
aqui nascem podem manter, conservar e defender sua própria vida na medida do
possível: e é isso autorizado a tal ponto, que algumas vezes, para defendê-la,
houve quem matasse outras pessoas, sem por isso incorrer em culpa. E, se as
leis, cuja preocupação é o bem-estar de todos os mortais, fazem tais concessões,
muito mais honesto é para nós e para qualquer outro, sem ofender ninguém, adoptar
as medidas possíveis para conservar a própria vida! Observando bem, como venho,
os nossos comportamentos nesta manhã e ainda mais o de outras manhãs passadas,
e pensando em quais são as nossas conversas, compreendo, e as senhoras também
poderão compreender, que cada uma de nós teme por si mesma: eis aí algo que não
me surpreende nem um pouco, mas me surpreende muito que, tendo todas nós sentimentos
de mulher, não se tome medida nenhuma para remediar aquilo que cada uma teme fundamentadamente.
Permanecemos aqui, segundo penso, como se quiséssemos ou devêssemos ser
testemunhas de quantos cadáveres são trazidos à sepultura ou para ouvirmos se
os frades daqui, cujo número está quase reduzido a nada, cantam seus ofícios
nas horas devidas, ou para demonstrar a quem quer que apareça, em nossos
trajes, a qualidade e a quantidade de nossas misérias. E, se saímos daqui,
vemos mortos ou doentes transportados por todos os lados, ou então vemos
aqueles que, já condenados ao exílio pela autoridade pública, em decorrência de
seus malfeitos, agora escarnecem dessas mesmas leis, ao saberem que seus
executores estão mortos
ou doentes, e percorrem a região com ímpeto desagradável; ou então vemos o poviléu
de nossa cidade, aquecido com nosso sangue, autodenominando-se coveiro,
cavalgar e percorrer todos os lugares, zombar de nós e jogar-nos ao rosto os
nossos males com canções indecorosas. E não ouvimos outra coisa senão: fulanos
estão mortos e sicranos estão para morrer; e, se houvesse gente para chorar,
ouviríamos prantos dolorosos por toda a parte. E, se voltamos para casa, não
sei se com as senhoras ocorre o mesmo que a mim: eu, que tinha grande número de
serviçais, encontrando lá agora apenas minha criada, fico apavorada e tenho arrepios
por quase todo o corpo; e, seja qual for a parte da casa aonde vá ou permaneça,
parece que vejo as sombras daqueles que se foram, mas não com as expressões que
costumavam ter, e sim assombrando-me com uma aparência horrível, que não sei de
onde lhes veio depois que morreram. Por todas essas coisas, aqui, fora daqui e
em casa eu me sinto mal; principalmente porque também me parece que ninguém que
tenha alguma energia e lugar aonde ir, como nós, continua aqui, excepto nós
mesmas».
[…]
In Giovanni Boccaccio (1313-1375),
Decameron, 1354, Relógio d’Água, ISBN 978-972-708-879-9, L&Pm, 2013, ISBN
978-852-542-941-4.
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