quarta-feira, 3 de junho de 2020

Decameron. Giovanni Boccaccio (1313-1375). «Minhas caras senhoras já terão muitas vezes ouvido dizer, assim como eu, que quem usa honestamente sua razão não comete injúria contra ninguém»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) A mim mesmo desagrada ficar ruminando demoradamente tais misérias: por isso, desejando agora deixar de lado aquelas que posso oportunamente evitar, direi que, estando nossa cidade em tal situação, quase vazia de habitantes, certa terça-feira pela manhã, conforme fiquei sabendo por pessoa digna de fé, na venerável igreja de Santa Maria Novella, onde não havia quase mais ninguém, sete donzelas assistiam aos divinos ofícios em trajes lutuosos, como a tal momento convinha; eram elas unidas entre si por amizade, vizinhança ou parentesco, nenhuma delas passara dos vinte e oito anos nem estava abaixo dos dezoito, sendo todas sérias, de sangue nobre, formosas e dotadas de bons costumes e elevada dignidade. Seus nomes eu declararia na forma devida, caso não tivesse boas razões para deixar de fazê-lo, e as razões são as seguintes: não quero que, ouvindo no futuro as coisas que narraram (e que seguem adiante), alguma delas venha a sentir-se envergonhada, visto que hoje são um tanto estritas as leis que regem o divertimento, ao passo que então, pelos motivos acima descritos, eram relaxadas, não só para a idade delas, como também para idades muito mais maduras; também não quero dar ocasião para que os invejosos, sempre prontos a criticar toda e qualquer vida louvável, deslustrem de algum modo a honra das valorosas senhoras com palavras indecorosas. No entanto, para que adiante seja possível entender sem confusão aquilo que cada uma disse, pretendo designá-las com nomes ajustados no todo ou em parte às suas respectivas qualidades: a primeira, que era a mais velha, será chamada Pampineia; a segunda, Fiammetta; Filomena será a terceira; e a quarta, Emília; Lauretta será o nome da quinta; e o da sexta, Neifile, sendo a última chamada Elissa, não sem razão.
Estas, sem serem levadas por propósito algum, mas sim pelo acaso, reuniram-se numa das partes da igreja e, sentadas quase em círculo, depois de vários suspiros, deixaram de rezar pais-nossos e começaram a conversar sobre as condições da época e de muitas e várias coisas. Depois de algum tempo, como as outras se calassem, Pampineia começou a falar da seguinte maneira:

Minhas caras senhoras já terão muitas vezes ouvido dizer, assim como eu, que quem usa honestamente sua razão não comete injúria contra ninguém. Dita a razão natural que todos os que aqui nascem podem manter, conservar e defender sua própria vida na medida do possível: e é isso autorizado a tal ponto, que algumas vezes, para defendê-la, houve quem matasse outras pessoas, sem por isso incorrer em culpa. E, se as leis, cuja preocupação é o bem-estar de todos os mortais, fazem tais concessões, muito mais honesto é para nós e para qualquer outro, sem ofender ninguém, adoptar as medidas possíveis para conservar a própria vida! Observando bem, como venho, os nossos comportamentos nesta manhã e ainda mais o de outras manhãs passadas, e pensando em quais são as nossas conversas, compreendo, e as senhoras também poderão compreender, que cada uma de nós teme por si mesma: eis aí algo que não me surpreende nem um pouco, mas me surpreende muito que, tendo todas nós sentimentos de mulher, não se tome medida nenhuma para remediar aquilo que cada uma teme fundamentadamente. Permanecemos aqui, segundo penso, como se quiséssemos ou devêssemos ser testemunhas de quantos cadáveres são trazidos à sepultura ou para ouvirmos se os frades daqui, cujo número está quase reduzido a nada, cantam seus ofícios nas horas devidas, ou para demonstrar a quem quer que apareça, em nossos trajes, a qualidade e a quantidade de nossas misérias. E, se saímos daqui, vemos mortos ou doentes transportados por todos os lados, ou então vemos aqueles que, já condenados ao exílio pela autoridade pública, em decorrência de seus malfeitos, agora escarnecem dessas mesmas leis, ao saberem que seus executores estão mortos ou doentes, e percorrem a região com ímpeto desagradável; ou então vemos o poviléu de nossa cidade, aquecido com nosso sangue, autodenominando-se coveiro, cavalgar e percorrer todos os lugares, zombar de nós e jogar-nos ao rosto os nossos males com canções indecorosas. E não ouvimos outra coisa senão: fulanos estão mortos e sicranos estão para morrer; e, se houvesse gente para chorar, ouviríamos prantos dolorosos por toda a parte. E, se voltamos para casa, não sei se com as senhoras ocorre o mesmo que a mim: eu, que tinha grande número de serviçais, encontrando lá agora apenas minha criada, fico apavorada e tenho arrepios por quase todo o corpo; e, seja qual for a parte da casa aonde vá ou permaneça, parece que vejo as sombras daqueles que se foram, mas não com as expressões que costumavam ter, e sim assombrando-me com uma aparência horrível, que não sei de onde lhes veio depois que morreram. Por todas essas coisas, aqui, fora daqui e em casa eu me sinto mal; principalmente porque também me parece que ninguém que tenha alguma energia e lugar aonde ir, como nós, continua aqui, excepto nós mesmas».
[…]
In Giovanni Boccaccio (1313-1375), Decameron, 1354, Relógio d’Água, ISBN 978-972-708-879-9, L&Pm, 2013, ISBN 978-852-542-941-4.
                                         
Cortesia de Ed’Água/L&Pm/JDACT