Cortesia
de wikipedia e jdact
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E não só ouvi dizer como também
vi várias vezes que esses tais (se é que alguns há), sem fazerem distinção
alguma entre coisas honestas e desonestas, movidos somente pelo apetite,
sozinhos ou acompanhados, de dia e de noite, fazem tudo o que lhes dê na telha.
E não só o fazem as pessoas sem vínculos religiosos, mas também as
enclausuradas dos mosteiros, que, convencidas de que aquilo lhes convém e só é proibido
às outras, transgredindo as leis da obediência, entregam-se aos prazeres
carnais e, imaginando assim salvar-se, tornam-se lascivas e dissolutas. E se
assim é (como se vê claramente que é), que fazemos aqui? Que esperamos? Que
sonhamos? Porque somos mais preguiçosas e lerdas com nossa saúde do que todo o
restante dos cidadãos? Acaso nos consideramos menos importantes que todas as
outras? Ou acreditamos que nossa vida está ligada ao corpo com cadeias mais
fortes do que as dos outros, de modo que não precisamos nos preocupar com nada
que seja capaz de prejudicá-la? Estamos erradas, enganadas; que estupidez a
nossa, se acreditarmos nisso! Sempre que nos lembrarmos de quantos e quais homens
e mulheres foram vencidos por essa cruel pestilência, encontraremos fortíssimo argumento.
Por isso, para não incidirmos, por renitência ou desleixo, naquilo de que
podemos escapar de alguma maneira, desde que queiramos (não sei se as senhoras
pensarão como eu), creio que seria óptimo se, tal como estamos, tal como muitos
antes de nós fizeram e fazem, saíssemos desta cidade; e, fugindo como da morte
aos exemplos indecorosos dos outros, fôssemos decorosamente para as
propriedades do campo que cada uma de nós tem em grande quantidade; e ali gozássemos
da festa, da alegria e do prazer que pudéssemos, sem ultrapassar de modo algum
os limites da razão. Ali se ouvem pássaros cantar, veem-se colinas e planícies verdejantes,
e os campos cobertos de trigo não ondeiam menos que o mar; árvores há de muitos
tipos, e o céu, principalmente, por mais tormentoso que esteja, não nos nega
suas belezas eternas, muito mais dignas de admirar do que as muralhas vazias da
nossa cidade. Além disso, o ar ali é bem mais fresco, e das coisas todas de que
a vida carece nestes tempos a quantidade lá é maior, sendo menor o número de
contrariedades. E, embora os lavradores morram tanto quanto aqui os cidadãos,
ali a tristeza é menor porque as casas são mais esparsas e há menos habitantes
que na cidade. Aqui, por outro lado, se bem percebo, não abandonaremos ninguém;
aliás, sem fugir à verdade, podemos dizer que abandonadas fomos nós; porque os
nossos, ou por morrerem ou por fugirem da morte, deixaram-nos sozinhas nesta aflição,
como se não lhes fôssemos tão próximas. Portanto, nenhuma repreensão caberá se tomarmos tal decisão; dor, desgosto e talvez morte poderão
advir, se não o fizermos. Para tanto, quando lhes parecesse melhor, creio que
faríamos bem em tomar nossas serviçais e, fazendo-nos acompanhar por todas as
coisas necessárias, passarmos um dia num lugar e outro dia em outro, entregues à
alegria e à festa que estes tempos podem nos propiciar; e assim permaneceríamos
até percebermos (se antes a morte não nos surpreender) que fim o céu destina a
estas coisas. E lembrem-se de que é mais conveniente ir embora com decência do que,
como ocorre a grande número das outras, ficar sem decência.
As outras senhoras,
depois de ouvirem Pampineia, não só louvaram sua sugestão como também desejavam
segui-la e já tinham começado a tratar entre si do modo de fazê-lo, como se,
levantando-se de seus assentos, quisessem ir já se pondo a caminho. Mas
Filomena, que era sensatíssima, disse: senhoras, embora as palavras de
Pampineia tenham sido bem pensadas, não será por isso que havemos de fazer tudo
correndo, como parece que querem. É bom lembrar que somos todas mulheres, e não
há aqui nenhuma que seja tão nova para não saber como as mulheres convivem e se
governam sem a previdência de algum homem. Somos volúveis, briguentas, desconfiadas,
pusilânimes e medrosas; por isso, duvido muito que este grupo não se dissolva bem
mais cedo do que seria necessário e com menos honra para nós, caso não
busquemos orientação diferente da nossa; por isso, é bom tomar providências
antes de começarmos.
Então Elissa disse: realmente,
os homens são cabeças das mulheres, e sem a ordem deles raramente alguma obra
nossa chega a bom termo; mas como podemos obter esses homens? Cada uma de nós
sabe que a maior parte dos seus morreu, e dos outros que ficaram vivos, uns
aqui, outros acolá, sabe-se lá onde, em diferentes companhias vão todos fugindo
daquilo de que estamos procurando fugir; e aceitar estranhos não seria
conveniente; por isso, se quisermos cuidar de nossa saúde, será bom
encontrarmos um modo de nos organizarmos de tal sorte que ao lugar aonde formos
em busca de deleite e repouso não sejamos seguidas por contrariedades e escândalos».
In
Giovanni Boccaccio (1313-1375), Decameron, 1354, Relógio d’Água, ISBN
978-972-708-879-9, L&Pm, 2013, ISBN 978-852-542-941-4.
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