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«Em 1692, a Colónia da Baía de Massachusetts executou por
bruxaria catorze mulheres, cinco homens e dois cachorros. A feitiçaria se
materializou em Janeiro, o primeiro enforcamento ocorreu em Junho, o último em
Setembro. Seguiu-se um rígido silêncio chocado. O que incomodou os
sobreviventes não foi a maliciosa prática de bruxaria, mas a desastrada
aplicação da justiça. Parece que inocentes foram enforcados, enquanto alguns
culpados escaparam. Não houve voto de jamais esquecer; entregar esses nove
meses ao olvido parecia a reacção mais adequada, e funcionou durante uma
geração. Desde então nós conjurámos Salem, o pesadelo nacional americano, o
episódio cruel de tablóide, o capítulo distópico do passado. Ele explode e
salta através da história e da literatura dos Estados Unidos.
Ninguém
foi queimado na fogueira, nenhuma parteira morreu. O vodu chegou mais tarde,
com um historiador do século XIX; o escravo meio negro, com Henry Longfellow;
os encantamentos na floresta, com Arthur Miller. A erudição desempenha na
história um papel maior que a ignorância. No entanto, é verdade que 55 pessoas
confessaram prática de bruxaria e um pastor foi enforcado. Embora nunca
saibamos o número exacto dos formalmente acusados de ter maldosa, maliciosa e deleitosamente
se envolvido com bruxaria, algo entre 144 e 185 bruxas e bruxos foram citados
em 25 aldeias e cidades antes do fim da crise. Há relatos de que mais de
setecentas bruxas voaram sobre Massachusetts. Tantos foram os acusados que as
testemunhas confundiam seus feiticeiros.
A
bruxa mais nova tinha cinco anos, a mais velha quase oitenta. Uma filha acusou
a mãe, que por sua vez acusou a mãe, que acusou uma vizinha e um pastor. Uma
esposa e uma filha denunciaram o marido e pai. Uma mulher que viajou até Salem
para limpar seu nome acabou algemada antes do fim da tarde. Em Andover, a
comunidade mais severamente afligida, uma em cada quinze pessoas foi acusada. O
pastor mais velho da cidade descobriu que conhecia nada menos que vinte bruxas.
Ao longo do episódio vêm à tona várias perguntas que tocam o nervo exposto de
nossos medos: quem estava conspirando? É possível ser bruxa sem saber? Alguém
estaria a salvo? Como, três gerações depois da fundação, a idealista Colónia da
Baía chegou a um lugar tão escuro? As teorias que se propõem explicar os
julgamentos de bruxos em Salem são inúmeras: tensões geracionais, sexuais, económicas,
eclesiásticas e de classe; hostilidades regionais importadas da Inglaterra; envenenamento
alimentar; histeria adolescente; fraude, impostos, conspiração; trauma de
ataques indígenas; e feitiçaria em si estão entre as mais razoáveis. As acusações
de bruxaria tendem a atingir o pico no final do Inverno. Ao longo dos anos,
várias partes desempenharam o papel de vilão. Os moradores de Salem procuravam
explicar o que levava um guarda com um mandado de prisão a qual porta. Para
eles, o padrão era só ligeiramente mais claro que para nós. Mesmo na época,
ficou evidente para alguns que Salem era uma história atrás da qual havia outra
história sobre algo completamente diferente. Em trezentos anos, ainda não
penetramos nesses nove meses da história de Massachusetts. Se soubéssemos mais
sobre Salem poderíamos prestar-lhe menos atenção.
A
população da Nova Inglaterra em 1692 caberia no actual Yankee Stadium. Praticamente
todos eram puritanos. Tendo sofrido por sua fé, aquelas famílias viajaram para
a América do Norte a fim de exercer a sua crença com mais pureza e menos perigo
do que no país de onde vinham, como disse um pastor no auge da crise. Eles
consideravam incompleta a Reforma, insuficientemente pura a Igreja da
Inglaterra. Tencionavam completar a tarefa em novo local e tinham a vantagem de
construir do nada uma civilização. Protestantes não conformistas, eles eram
duplamente dissidentes. Isso não os tornava pessoas bem-aceitas, pois tendiam a
criar cisões e facções. Como qualquer povo oprimido, se definiam por aquilo que
os ofendia, o que daria à Nova Inglaterra um sabor destemido e, como já se
afirmou, levaria à independência dos Estados Unidos. Calvinistas rigorosos tinham
percorrido uma grande distância para rezar como quisessem e eram intolerantes
com os diferentes. Eram ardorosos, incuravelmente lógicos, de uma cultura tão
homogénea como jamais existiu naquele continente. Se havia algum livro nas
casas, este era a Bíblia. Os americanos dos primórdios respiravam, sonhavam,
disciplinavam e alucinavam com base em imagens e textos bíblicos». In Stacy Schiff, As
Bruxas, Editora Marcador, 2017, ISBN 978-989-754-310-4.
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