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«(…) O
rei, primeiro, pareceu ficar surpreso. Ele mal estava acostumado a que os
homens à sua volta falassem com ele directo e sem os cerimoniosos rodeios
habituais. Muito menos as mulheres. Você é uma mulher abençoada em muitos
aspectos, minha cara Sigrid, disse ele, finalmente, com palavras lentas e
pegando de novo a mão dela. Amanhã, quando já tivermos dormido no castelo
depois do banquete de hoje, irei chamar o padre Henri e aí vamos resolver toda
essa história. Amanhã, mas não hoje. Também não ficará bem continuarmos aqui
nós dois, sentados durante muito mais tempo a sussurrar. De um momento para o
outro, ela tinha feito a dádiva da sua herança, Varnhem. Nenhum homem, nenhuma
mulher, poderia quebrar a sua palavra diante do próprio rei, assim como o rei
jamais poderia quebrar a sua palavra. Aquilo que ela fizera ninguém jamais
poderia desfazer.
Mas foi também uma atitude prática, entendeu ela, quando se
recuperou um pouco. O Espírito Santo podia, portanto, ser prático, e os caminhos
do Senhor nem sempre eram tortuosos.
Varnhem e Arnäs distavam uma da outra quase dois dias de
marcha a cavalo. Varnhem estava situada perto de Skara, não muito longe da
residência do bispo, no sopé da montanha Billingen. Arnäs situava-se na margem
leste do lago Vànern, onde o condado de Sunnanskog terminava e começava o de
Tiveden, no sopé da montanha Kinnekulle. A propriedade de Varnhem era mais nova
e estava em muito melhor estado, e era por isso que Sigrid queria passar lá o
tempo mais frio, em especial quando as terríveis dores do parto estivessem para
chegar. Magnus, seu marido, gostaria que eles escolhessem a propriedade de
Arnäs, herdada de seus pais, para viver. Ela preferia Varnhem e os dois nunca
conseguiram chegar a um consenso. Por vezes, não conseguiam nem falar do
problema com a calma e a paciência que deviam existir entre marido e mulher.
Arnäs precisava ser reequipada e reconstruída. Mas estava localizada numa
área-limite, ao longo da floresta, sem donos, onde havia muitos terrenos livres
e outros pertencentes ao rei, com possibilidades de negociação ou compra. Nessa
propriedade muita coisa poderia ser mudada para melhor, em especial se servos e
ferramentas fossem transferidos de Varnhem.
Não foi exactamente assim que o Espírito Santo se expressou sobre o assunto quando fez Sua aparição
perante ela. Sigrid teve uma visão que não estava bem clara, uma manada de
cavalos muito bonitos que brilhavam em cores que lembravam a madrepérola. Os
cavalos haviam chegado, correndo na sua direcção, perto de uma lagoinha com
muitas flores, as crinas eram brancas e sedosas, as caudas desdenhosamente
levantadas, e eles se movimentavam alegremente, ágeis como gatos. Era um prazer
vê-los em todos os seus movimentos. Não eram cavalos selvagens nem cavalos sem
dono, já que pertenciam a ela. E em algum lugar por trás dos cavalos
brincalhões, traquinas e sem selas, veio um jovem cavalgando num cavalo
prateado, também com a crina branca e cauda majestosamente levantada. Ela
conhecia esse homem jovem, mas ao mesmo tempo não o conhecia. Ele portava
escudo, mas não usava elmo. A marca do escudo, ela não pôde reconhecer como
sendo de qualquer dos seus parentes ou de parentes do seu marido. O escudo era
totalmente branco, com uma grande cruz de sangue, nada mais.
O jovem parou o seu cavalo bem junto dela e falou com ela,
e ela ouviu todas as palavras, entendeu tudo, mas ao mesmo tempo não entendeu
nada. Mas Sigrid sabia que o que ele disse significava que ela teria de dar a
Deus um presente, que, no momento, era a atitude mais necessária, neste
condado, onde o rei Sverker reinava, isto é, dar um bom lugar para os monges de
Lurõ. Mais tarde, ela observou bem os monges, à medida que saíam lentamente,
após a sua longa apresentação. Não pareciam
nem um pouco perturbados pelo milagre que tinham acabado de provocar. Parecia
mais como se eles tivessem terminado um turno de trabalho, de quebrar pedra, um
entre tantos outros turnos na Götaland Ocidental, como se eles, agora,
estivessem pensando mais na ceia do que em qualquer outra coisa. Tinham
conversado por um momento, coçado por um momento as manchas vermelhas que
muitos deles exibiam nas carecas grosseiramente raspadas. Em muitos a pele era
enrugada no rosto e no pescoço. Para eles, as coisas não eram muito fáceis em Lurõ,
qualquer um podia ver isso, e o Inverno, certamente, não lhes fora muito
benigno. Portanto, a vontade de Deus não era difícil de entender, aqueles que
conseguiam cantar milagres precisavam receber um lugar melhor para viver e para
trabalhar. E Varnhem era um lugar muito bom». In
Jan Guillou, A Caminho de Jerusalém, As
Cruzadas, Bertrand Brasil, 2002, ISBN 978-852-860-896-0.
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