Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Eu fui enviado a estes
árabes como estranho, incapaz de pensar os seus pensamentos, ou de aderir às
suas crenças, mas encarregado, pelo dever, de os conduzir à frente, e de
desenvolver ao máximo qualquer movimento seu, proveitoso para a Inglaterra, na
guerra que se estava travando. Embora eu não pudesse assumir o perfil moral
daqueles povos, devia, pelo menos, ocultar o meu, e passar no meio deles sem provocar
atritos, nem discórdia, nem crítica, e sim exercendo, tão-somente, despercebida
influência. Embora tenha sido companheiro deles, não desejo ser seu apologista,
nem defensor. Hoje, envergando as minhas roupas antigas, eu poderia desempenhar
o papel de espectador, obediente às sensibilidades do nosso teatro..., mas é mais
honesto assinalar que estas ideias e estas acções, então, transcorreram naturalmente.
O que agora parece dissoluto ou sádico, parecia, ali, inevitável, ou mera rotina
sem importância. Havia sempre sangue em nossas mãos: tínhamos permissão para
isto. Ferir e matar pareciam sofrimentos efémeros, tão breve e desaventurada se
nos mostrava a vida. Com a tristeza de uma vida tão grandiosa, a tristeza da
punição tinha de ser impiedosa.
Vivíamos para o dia, e morríamos
por ele. Quando havia razão e desejo de punir, escrevíamos a nossa lição com a
carabina, ou vergastávamos imediatamente a carne imunda do sofredor; e o caso
pairava acima de qualquer direito a apelo. O deserto não proporcionava as
penalidades requintadamente lentas dos tribunais e das masmorras. Como era
natural, as nossas recompensas e os nossos prazeres se dissipavam tão rapidamente
como os nossos aborrecimentos; mas, para mim, em particular, aqueles se faziam
sentir em número muito menor do que estes. O modo de vida dos beduínos era rude,
mesmo para os afeitos a ele, sendo, para os estranhos, simplesmente horrível: assemelhava-se
à morte em plena vida. Quando se terminava a marcha, ou a operação, eu não
tinha mais energia para registar as sensações; nem, durante as mesmas, me
sobrava tempo para apreciar o enternecimento espiritual que, por vezes, se
apoderava de nós. Nas minhas notas, o cruel, ao invés do belo, encontrava
lugar. Gostávamos mais, sem dúvida, dos raros momentos de paz e de esquecimento;
mas eu me recordo mais das agonias, dos terrores e dos erros. A nossa vida não
se acha condensada no que escrevi (há coisas que não devem ser repetidas a
sangue-frio, por muito vergonhosas); mas o que escrevi fez parte da nossa vida.
Peço a Deus que os homens, lendo a narrativa, não aspirem, por amor ao brilho
das coisas estranhas, a prostituírem-se, a si e aos seus talentos, servindo a
outra raça.
O homem que se entrega à posse de
estranhos leva uma vida brutalizada, porque vende a alma a um bruto. Ele próprio
não pertence aos estranhos. Pode, portanto, permanecer contra eles,
persuadindo-se do cumprimento de sua missão, comprando-os e forçando-os a ser
alguma coisa que eles, por vontade e acordo próprios, jamais conseguiriam ser.
Depois, esse homem se utiliza das forças do seu ambiente natural, fazendo pressão
para que os estranhos abandonem o próprio. Ou, de conformidade com o que
aconteceu comigo, imita-os tão bem, que eles, espuriamente, passam a imitá-lo
por sua vez. A esta altura, tal homem renuncia ao seu ambiente, e pretende integrar-se
no deles; e as pretensões são ocas, sem valor. Em nenhum dos casos ele realiza
coisas particularmente suas, nem coisa suficientemente limpa para ser sua (sem ideia
de conversão), permitindo que os estranhos manifestem a acção ou a reacção que lhes
apraz, em face do silencioso exemplo.
No
meu caso, o esforço daqueles anos, para viver em trajes árabes, e para imitar a
sua feição mental, roubou-me ao meu eu
inglês, levando-me a considerar o Ocidente e as suas convenções com novos
olhos: e estes destruíram tudo para mim. Ao mesmo tempo, eu não podia vestir,
sinceramente, a pele árabe: tratava-se apenas de uma simulação. Com facilidade
se torna infiel um homem, mas dificilmente pode ele ser convertido a outra fé.
Desvencilhei-me de uma forma, sem adoptar a outra, tornando-se qual ataúde de
Mohammed, na nossa lenda, com o resultante sentimento de intensa solidão na
vida, e de estranheza, não relativamente aos outros homens, mas a tudo o que
eles fazem. Tais alheamentos se verificam, por vezes, no ser exausto em virtude
de prolongado esforço físico e de contínuo isolamento. O corpo vagabundeia mecanicamente,
enquanto a mente lúcida o abandona e, situando-se do lado de fora, põe-se a
olhar para dentro dele mesmo, com espírito crítico, desejando saber o que o fútil
traste fez e por quê. Às vezes, estes eus
conversam no vácuo; e então, a loucura se encontra muito perto, como creio que
deve ter estado junto do homem que pôde ver as coisas, a um só tempo, através
dos véus de dois costumes, de duas educações e de dois ambientes». In
T.E. Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria, 1922, 1926, Publicações
Europa-América, 2004, ISBN 978-972-100-483-2.
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