domingo, 28 de junho de 2020

Os Sete Pilares da Sabedoria. T.E. Lawrence. «O homem que se entrega à posse de estranhos leva uma vida brutalizada, porque vende a alma a um bruto…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Eu fui enviado a estes árabes como estranho, incapaz de pensar os seus pensamentos, ou de aderir às suas crenças, mas encarregado, pelo dever, de os conduzir à frente, e de desenvolver ao máximo qualquer movimento seu, proveitoso para a Inglaterra, na guerra que se estava travando. Embora eu não pudesse assumir o perfil moral daqueles povos, devia, pelo menos, ocultar o meu, e passar no meio deles sem provocar atritos, nem discórdia, nem crítica, e sim exercendo, tão-somente, despercebida influência. Embora tenha sido companheiro deles, não desejo ser seu apologista, nem defensor. Hoje, envergando as minhas roupas antigas, eu poderia desempenhar o papel de espectador, obediente às sensibilidades do nosso teatro..., mas é mais honesto assinalar que estas ideias e estas acções, então, transcorreram naturalmente. O que agora parece dissoluto ou sádico, parecia, ali, inevitável, ou mera rotina sem importância. Havia sempre sangue em nossas mãos: tínhamos permissão para isto. Ferir e matar pareciam sofrimentos efémeros, tão breve e desaventurada se nos mostrava a vida. Com a tristeza de uma vida tão grandiosa, a tristeza da punição tinha de ser impiedosa.
Vivíamos para o dia, e morríamos por ele. Quando havia razão e desejo de punir, escrevíamos a nossa lição com a carabina, ou vergastávamos imediatamente a carne imunda do sofredor; e o caso pairava acima de qualquer direito a apelo. O deserto não proporcionava as penalidades requintadamente lentas dos tribunais e das masmorras. Como era natural, as nossas recompensas e os nossos prazeres se dissipavam tão rapidamente como os nossos aborrecimentos; mas, para mim, em particular, aqueles se faziam sentir em número muito menor do que estes. O modo de vida dos beduínos era rude, mesmo para os afeitos a ele, sendo, para os estranhos, simplesmente horrível: assemelhava-se à morte em plena vida. Quando se terminava a marcha, ou a operação, eu não tinha mais energia para registar as sensações; nem, durante as mesmas, me sobrava tempo para apreciar o enternecimento espiritual que, por vezes, se apoderava de nós. Nas minhas notas, o cruel, ao invés do belo, encontrava lugar. Gostávamos mais, sem dúvida, dos raros momentos de paz e de esquecimento; mas eu me recordo mais das agonias, dos terrores e dos erros. A nossa vida não se acha condensada no que escrevi (há coisas que não devem ser repetidas a sangue-frio, por muito vergonhosas); mas o que escrevi fez parte da nossa vida. Peço a Deus que os homens, lendo a narrativa, não aspirem, por amor ao brilho das coisas estranhas, a prostituírem-se, a si e aos seus talentos, servindo a outra raça.
O homem que se entrega à posse de estranhos leva uma vida brutalizada, porque vende a alma a um bruto. Ele próprio não pertence aos estranhos. Pode, portanto, permanecer contra eles, persuadindo-se do cumprimento de sua missão, comprando-os e forçando-os a ser alguma coisa que eles, por vontade e acordo próprios, jamais conseguiriam ser. Depois, esse homem se utiliza das forças do seu ambiente natural, fazendo pressão para que os estranhos abandonem o próprio. Ou, de conformidade com o que aconteceu comigo, imita-os tão bem, que eles, espuriamente, passam a imitá-lo por sua vez. A esta altura, tal homem renuncia ao seu ambiente, e pretende integrar-se no deles; e as pretensões são ocas, sem valor. Em nenhum dos casos ele realiza coisas particularmente suas, nem coisa suficientemente limpa para ser sua (sem ideia de conversão), permitindo que os estranhos manifestem a acção ou a reacção que lhes apraz, em face do silencioso exemplo.
No meu caso, o esforço daqueles anos, para viver em trajes árabes, e para imitar a sua feição mental, roubou-me ao meu eu inglês, levando-me a considerar o Ocidente e as suas convenções com novos olhos: e estes destruíram tudo para mim. Ao mesmo tempo, eu não podia vestir, sinceramente, a pele árabe: tratava-se apenas de uma simulação. Com facilidade se torna infiel um homem, mas dificilmente pode ele ser convertido a outra fé. Desvencilhei-me de uma forma, sem adoptar a outra, tornando-se qual ataúde de Mohammed, na nossa lenda, com o resultante sentimento de intensa solidão na vida, e de estranheza, não relativamente aos outros homens, mas a tudo o que eles fazem. Tais alheamentos se verificam, por vezes, no ser exausto em virtude de prolongado esforço físico e de contínuo isolamento. O corpo vagabundeia mecanicamente, enquanto a mente lúcida o abandona e, situando-se do lado de fora, põe-se a olhar para dentro dele mesmo, com espírito crítico, desejando saber o que o fútil traste fez e por quê. Às vezes, estes eus conversam no vácuo; e então, a loucura se encontra muito perto, como creio que deve ter estado junto do homem que pôde ver as coisas, a um só tempo, através dos véus de dois costumes, de duas educações e de dois ambientes». In T.E. Lawrence, Os Sete Pilares da Sabedoria, 1922, 1926, Publicações Europa-América, 2004, ISBN 978-972-100-483-2.

Cortesia de PEAmérica/JDACT