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de wikipedia e jdact
«(…) Enquanto as
mulheres assim conversavam, eis que três rapazes entravam na igreja, mas não eram
tão jovens que o mais novo tivesse menos de vinte e cinco anos; neles nem a perversidade
dos tempos nem a perda de amigos ou parentes nem o temor por si mesmos tinham
conseguido arrefecer o amor, que dirá extingui-lo. Um se chamava Pânfilo, o
segundo, Filostrato, e o terceiro, Dioneu, sendo todos bastante agradáveis e de
bons costumes; e, para se consolarem em meio a tanta perturbação das coisas,
iam em busca de ver as suas amadas, que por acaso estavam, as três, entre as
referidas sete; das outras, algumas eram parentes deles. Assim que o olhar
deles caiu sobre elas, foram eles também vistos por elas; então Pampineia começou,
sorrindo: vejam que a sorte é propícia à nossa iniciativa e pôs diante de nós
jovens discretos e valorosos que de bom grado serão nossos guias e servidores,
se não nos furtarmos a lhes dar essa incumbência. Neifile então, com o rosto
totalmente enrubescido pelo pudor, pois era uma das amadas dos jovens, disse: Pampineia,
por Deus, veja o que está dizendo; sei perfeitamente que de qualquer um deles só é
possível falar bem, e creio que eles sejam aptos a feitos muito maiores que
esse; também acho que podem oferecer companhia boa e honesta não só a nós, como
também a mulheres muito mais belas e prezadas que nós. Mas, visto que é bem
conhecido o facto de estarem enamorados de algumas de nós, temo que, levando-os
connosco, possamos incorrer em infâmia e desaprovação, sem culpa nossa ou
deles.
Filomena disse então: isso não
importa: desde que eu viva com decência e a consciência não me acuse de nada, que
fale quem quiser o contrário; Deus e a verdade empunharão armas por mim. Ora,
se eles estiverem dispostos a ir connosco, realmente, como disse Pampineia,
poderíamos dizer que a sorte é favorável à nossa partida.
As outras, ouvindo-a falar desse
modo, não só não discordaram como também disseram unanimemente que deveriam
chamá-los, dizer-lhes qual era a intenção delas e solicitar que lhes dessem o
prazer de sua companhia naquela viagem. Assim, sem mais palavras, Pampineia,
que tinha laços de consanguinidade com um deles, levantou-se e, dirigindo-se a eles,
que estavam parados a olhá-las, cumprimentou-os com um sorriso alegre,
comunicou-lhes as suas intenções e pediu-lhes em nome de todas que se
dispusessem a fazer-lhes companhia com ânimo puro e fraterno. De início, os
jovens acharam que estavam sendo burlados, mas depois, vendo que aquela dama
falava seriamente, responderam com alegria que estavam prontos para atendê-las;
e, passando à acção sem mais delongas, antes de partirem dispuseram tudo o que
deveria ser feito para a viagem. E, depois de arrumarem ordenadamente todas as coisas
necessárias e de enviarem um mensageiro ao lugar aonde pretendiam ir, na manhã seguinte,
ou seja, na quarta-feira ao romper do dia, as mulheres com algumas serviçais e
os três jovens com três criados saíram da cidade e puseram-se a caminho; não
tinham se afastado mais de duas pequenas milhas quando chegaram ao lugar que
haviam determinado como primeiro.
O referido lugar ficava numa
pequena montanha, um tanto distante das nossas estradas por todos os lados, era
coberto por vários arbustos e plantas com verdes frondes, de aspecto muito
agradável; no ponto mais alto ficava um palácio com um pátio bonito e espaçoso
no meio, galerias, salas e quartos, tudo belíssimo e ornado com pinturas
alegres e notáveis, tendo prados ao redor, jardins maravilhosos, poços de água
fresquíssima e adegas cheias de vinhos preciosos: coisas mais adequadas a
curiosos bebedores do que a mulheres sóbrias e recatadas. E, para seu grande
prazer, o grupo que chegava encontrou tudo varrido, leitos arrumados nos
quartos, estando todas as coisas cheias das flores que era possível encontrar
na estação, assim como cobertas de junco. E, ao se sentarem assim que chegaram,
disse Dioneu, que mais que qualquer outro era encantado e cheio de argúcia: foi
a sensatez das senhoras, mais que nossa astúcia, que nos trouxe aqui. Não sei o
que pretendem fazer de seus cuidados; os meus eu deixei atrás das portas da
cidade quando há pouco saí de lá; por isso, ou se dispõem a divertir-se, rir e
cantar comigo (quero dizer, tanto quanto convier à dignidade das senhoras), ou
me dão permissão para voltar aos meus cuidados e ficar na cidade atribulada». In
Giovanni Boccaccio (1313-1375), Decameron, 1354, Relógio d’Água, ISBN
978-972-708-879-9, L&Pm, 2013, ISBN 978-852-542-941-4.
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