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Buenos Aires, 2009
«(…) Carmela sorriu, lembrando o
dia em que Raquel apareceu a pedir-lhe emprego. Uma rapariga simples, magra, de
cabelo escorrido, olhar misto, tão sonhador como incisivo, estudante dos cursos
de Literatura e de Gestão, ainda que trabalhasse para poder pagar as propinas
do curso de Literatura. Naquela ocasião, Carmela olhou para Raquel, fez algumas
perguntas, e rapidamente descobriu que estava perante uma jovem precocemente
conhecedora dos autores mais importantes do mundo, especialmente da América
Latina.
E maravilhou-se quando percebeu
que ela ilustrava sempre um livro com uma citação do mesmo, como se fosse um
óbvio resumo, a frase que espoletava e concentrava toda a trama novelesca.
Carmela, deslumbrada, não sabia que aquelas frases eram as que Raquel retinha dos
livros abertos ao acaso durante os jogos literários da infância.
A jovem tinha essa dívida secreta
para com a avó Cleide. E Carmela convenceu-se de que não poderia escolher
melhor funcionária para a sua livraria. A El Ateneo abria em 2001,
depois de o grupo para o qual trabalhara ter recuperado um glamouroso edifício
situado no Barrio Norte da cidade, projectado pelos arquitetos Peró e
Torres Armengol, construído no início do século anterior e que, ao longo de
décadas, funcionara alternadamente como teatro e cinema, e se encontrava
condenado à demolição. A diretora estranhou a hesitação de Raquel.
Não me vais deixar ficar mal,
querida!? Não..., claro que não. É mesmo o meu sonho... Estou-te muito grata
por me concederes esta oportunidade. Só falta acertar umas coisas com o
Marcílio.
A diretora conhecia o noivo de
Raquel, e não se poderia dizer que nutrisse grande afecto por ele. Constava-se
que fora um brilhante estudante de Programação Informática, dos melhores que
qualquer universidade argentina conhecera. Mas não lhe perdoava o facto de não
ter lido um livro de Jorge Luis Borges, de desdenhar, sem ter lido, Neruda,
Hemingway ou Galeano, autores que, entendia Marcílio, efabulavam sobre mundos
irreais e sem qualquer interesse para se sobreviver ou enriquecer.
Amanhã dá-me a resposta, por
favor! Quero deixar tudo resolvido, rapidamente. Antes de bater a porta da sala
do terceiro andar, Carmela encarou uma última vez a adjunta. Raquel entreviu
uma espécie de súplica. Como desejaria responder logo que sim, dar-lhe um
abraço e agradecer-lhe a oportunidade com que sempre sonhara. Respirou fundo,
espreitou os ponteiros do relógio de parede e decidiu dar um passeio pela
cidade, visitando a avó, ali bem perto. Era a hora de almoço e tinha tempo para
si.
Saiu do edifício situado no
número 1860 da Avenida Santa Fé, virou à direita e não demorou a chegar à
movimentada Callao, uma das principais artérias da cidade. Escolheu o passeio
da esquerda até alcançar a frondosa Vicente López e, mais adiante, virou à
direita, para Junín. Na esquina do muro formado por uma miríade de peças de
tijolo maciço, prendia-se um velho candeeiro urbano, preto e dobrado sobre si
próprio, sem pé no chão, como que a lembrar aos vivos que se devem vergar
perante a sua efémera condição. Raquel não deixou de sorrir, recordando que a
avó lhe dizia que a vida e a saúde eram sempre uma condição transitória para La
Recoleta ou La Chacarita, os dois cemitérios da cidade, onde habitavam apenas
memórias de glórias e misérias de alguns e o esquecimento dos que pouco lastro
deixaram no mundo.
Sobre a muralha, algumas cruzes
anunciavam a cidade dos mortos que a habitavam como se de uma urbe medieval se
tratasse. Raquel suspirou e seguiu até à entrada do cemitério, formada por um
monumental conjunto de quatro colunas, unidas pela frase que dava as boas-vindas
aos féretros que de lá não mais sairiam: Requiescant In Pace.
Uma horda de turistas asiáticos
capitaneados por uma guia entrava no cemitério. Por isso, decidiu passar
previamente pela Basílica de Nossa Senhora do Pilar, situada na esquina da
necrópole que, em tempos, integrara o convento dos Franciscanos Recoletos, de quem
toda a família de Raquel sempre fora devota, tal como ela, que aspirava, um
dia, ali casar. Depois das orações, saiu do templo e dobrou o umbral do
cemitério que se transformara, mais do que num lugar de descanso, num frenético
entra e sai de toda a espécie de gente». In Alberto S. Santos, Amantes de Buenos
Aires, Porto Editora, 2019, ISBN 978-972-003-177-8.
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