sexta-feira, 12 de junho de 2020

Amantes de Buenos Aires. Alberto S. Santos. «… formada por um monumental conjunto de quatro colunas, unidas pela frase que dava as boas-vindas aos féretros que de lá não mais sairiam: Requiescant In Pace»

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Buenos Aires, 2009
«(…) Carmela sorriu, lembrando o dia em que Raquel apareceu a pedir-lhe emprego. Uma rapariga simples, magra, de cabelo escorrido, olhar misto, tão sonhador como incisivo, estudante dos cursos de Literatura e de Gestão, ainda que trabalhasse para poder pagar as propinas do curso de Literatura. Naquela ocasião, Carmela olhou para Raquel, fez algumas perguntas, e rapidamente descobriu que estava perante uma jovem precocemente conhecedora dos autores mais importantes do mundo, especialmente da América Latina.
E maravilhou-se quando percebeu que ela ilustrava sempre um livro com uma citação do mesmo, como se fosse um óbvio resumo, a frase que espoletava e concentrava toda a trama novelesca. Carmela, deslumbrada, não sabia que aquelas frases eram as que Raquel retinha dos livros abertos ao acaso durante os jogos literários da infância.
A jovem tinha essa dívida secreta para com a avó Cleide. E Carmela convenceu-se de que não poderia escolher melhor funcionária para a sua livraria. A El Ateneo abria em 2001, depois de o grupo para o qual trabalhara ter recuperado um glamouroso edifício situado no Barrio Norte da cidade, projectado pelos arquitetos Peró e Torres Armengol, construído no início do século anterior e que, ao longo de décadas, funcionara alternadamente como teatro e cinema, e se encontrava condenado à demolição. A diretora estranhou a hesitação de Raquel.
Não me vais deixar ficar mal, querida!? Não..., claro que não. É mesmo o meu sonho... Estou-te muito grata por me concederes esta oportunidade. Só falta acertar umas coisas com o Marcílio.
A diretora conhecia o noivo de Raquel, e não se poderia dizer que nutrisse grande afecto por ele. Constava-se que fora um brilhante estudante de Programação Informática, dos melhores que qualquer universidade argentina conhecera. Mas não lhe perdoava o facto de não ter lido um livro de Jorge Luis Borges, de desdenhar, sem ter lido, Neruda, Hemingway ou Galeano, autores que, entendia Marcílio, efabulavam sobre mundos irreais e sem qualquer interesse para se sobreviver ou enriquecer.
Amanhã dá-me a resposta, por favor! Quero deixar tudo resolvido, rapidamente. Antes de bater a porta da sala do terceiro andar, Carmela encarou uma última vez a adjunta. Raquel entreviu uma espécie de súplica. Como desejaria responder logo que sim, dar-lhe um abraço e agradecer-lhe a oportunidade com que sempre sonhara. Respirou fundo, espreitou os ponteiros do relógio de parede e decidiu dar um passeio pela cidade, visitando a avó, ali bem perto. Era a hora de almoço e tinha tempo para si.
Saiu do edifício situado no número 1860 da Avenida Santa Fé, virou à direita e não demorou a chegar à movimentada Callao, uma das principais artérias da cidade. Escolheu o passeio da esquerda até alcançar a frondosa Vicente López e, mais adiante, virou à direita, para Junín. Na esquina do muro formado por uma miríade de peças de tijolo maciço, prendia-se um velho candeeiro urbano, preto e dobrado sobre si próprio, sem pé no chão, como que a lembrar aos vivos que se devem vergar perante a sua efémera condição. Raquel não deixou de sorrir, recordando que a avó lhe dizia que a vida e a saúde eram sempre uma condição transitória para La Recoleta ou La Chacarita, os dois cemitérios da cidade, onde habitavam apenas memórias de glórias e misérias de alguns e o esquecimento dos que pouco lastro deixaram no mundo.
Sobre a muralha, algumas cruzes anunciavam a cidade dos mortos que a habitavam como se de uma urbe medieval se tratasse. Raquel suspirou e seguiu até à entrada do cemitério, formada por um monumental conjunto de quatro colunas, unidas pela frase que dava as boas-vindas aos féretros que de lá não mais sairiam: Requiescant In Pace.

Uma horda de turistas asiáticos capitaneados por uma guia entrava no cemitério. Por isso, decidiu passar previamente pela Basílica de Nossa Senhora do Pilar, situada na esquina da necrópole que, em tempos, integrara o convento dos Franciscanos Recoletos, de quem toda a família de Raquel sempre fora devota, tal como ela, que aspirava, um dia, ali casar. Depois das orações, saiu do templo e dobrou o umbral do cemitério que se transformara, mais do que num lugar de descanso, num frenético entra e sai de toda a espécie de gente». In Alberto S. Santos, Amantes de Buenos Aires, Porto Editora, 2019, ISBN 978-972-003-177-8.

Cortesia de PortoE/JDACT