Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Aquele foi o ponto crítico.
Se o prisioneiro lutasse agora, só conseguiria morrer mais cedo. Os soldados
desamarraram as pernas do prisioneiro e o deixaram de pé sozinho no carro de
boi, com as mãos amarradas nas costas. Fez-se silêncio na multidão. Frequentemente
havia uma perturbação naquela hora: a mãe do condenado tinha um ataque e
desatava a berrar, ou sua mulher puxava de uma faca e corria, numa tentativa de
última hora para salvá-lo. Às vezes o prisioneiro pedia perdão a Deus ou
proferia pragas de gelar o sangue contra seus algozes. Os soldados ficaram dos
dois lados do patíbulo, prontos para enfrentar qualquer incidente. Foi então
que o prisioneiro começou a cantar. Tinha voz de tenor alta e muito pura. Os
versos eram em francês, mas mesmo quem não podia entender a língua podia dizer,
pela melodia pungente, que era uma canção de tristeza e privação:
A cotovia,
apanhada na rede do caçador,
cantou mais doce que nunca,
como se a melodia do seu canto
pudesse voar e da rede fugir.
Enquanto cantava, olhava directamente
para alguém na multidão. Aos poucos formou-se um espaço em torno dessa pessoa,
e todos puderam vê-la. Era uma garota de cerca de quinze anos. Quando as
pessoas olharam para ela perguntaram-se por que não a teriam notado antes. Seu
cabelo castanho-escuro era comprido, grosso e farto, mostrando na testa larga o
que chamam de bico-de-viúva. Tinha feições regulares e boca sensual, de lábios cheios.
As velhas, reparando na sua cintura grossa e nos seios crescidos, concluíram
que estava grávida e adivinharam que o prisioneiro era o pai da criança.
Entretanto, todos os outros não notaram nada, excepto seus olhos.
Não é que não fosse bonita, mas
tinha olhos fundos, intensos e de uma espantosa cor dourada, tão luminosos e
penetrantes que, ao fixarem uma pessoa, parecia a esta que conseguiam
enxergar-lhe o coração, fazendo que desviasse os olhos com medo de que a jovem
descobrisse seus segredos. Estava coberta de andrajos, e as lágrimas lhe
corriam pelas faces sedosas. O condutor do carro de bois olhou para o meirinho,
à espera. Este olhou para o xerife, aguardando o gesto de cabeça. O jovem
sacerdote de ar sinistro deu uma cotovelada no xerife, impaciente, mas este não
lhe deu atenção. Deixou que o prisioneiro continuasse cantando. Houve uma pausa
aflitiva enquanto a linda voz do homem feio mantinha a morte à distância.
Ao crepúsculo o caçador
pegou sua presa,
A cotovia jamais
recuperou a liberdade.
Todos os pássaros e homens
certamente vão morrer,
mas canções podem viver
para sempre.
Quando a canção terminou o xerife
olhou para o seu auxiliar e assentiu com a cabeça. O meirinho gritou Hup!
e fustigou o flanco do boi com um pedaço de corda. O carroceiro estalou o seu
chicote ao mesmo tempo. O boi adiantou-se, o prisioneiro cambaleou e, quando o
animal puxou o carro, caiu no ar. A corda esticou e o pescoço do homem quebrou
com um estalo.
Ouviu-se um grito e todos olharam
para a garota». In Ken Follett, Os Pilares da Terra, 1989, Editorial Presença, 2007,
ISBN 978-972-233-788-5.
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