sexta-feira, 19 de junho de 2020

Os Pilares da Terra. Ken Follett. «A cotovia, apanhada na rede do caçador, cantou mais doce que nunca, como se a melodia do seu canto pudesse voar e da rede fugir»

Cortesia de wikipedia e jdact

«(…) Aquele foi o ponto crítico. Se o prisioneiro lutasse agora, só conseguiria morrer mais cedo. Os soldados desamarraram as pernas do prisioneiro e o deixaram de pé sozinho no carro de boi, com as mãos amarradas nas costas. Fez-se silêncio na multidão. Frequentemente havia uma perturbação naquela hora: a mãe do condenado tinha um ataque e desatava a berrar, ou sua mulher puxava de uma faca e corria, numa tentativa de última hora para salvá-lo. Às vezes o prisioneiro pedia perdão a Deus ou proferia pragas de gelar o sangue contra seus algozes. Os soldados ficaram dos dois lados do patíbulo, prontos para enfrentar qualquer incidente. Foi então que o prisioneiro começou a cantar. Tinha voz de tenor alta e muito pura. Os versos eram em francês, mas mesmo quem não podia entender a língua podia dizer, pela melodia pungente, que era uma canção de tristeza e privação:

A cotovia,
apanhada na rede do caçador,
cantou mais doce que nunca,
como se a melodia do seu canto
pudesse voar e da rede fugir.

Enquanto cantava, olhava directamente para alguém na multidão. Aos poucos formou-se um espaço em torno dessa pessoa, e todos puderam vê-la. Era uma garota de cerca de quinze anos. Quando as pessoas olharam para ela perguntaram-se por que não a teriam notado antes. Seu cabelo castanho-escuro era comprido, grosso e farto, mostrando na testa larga o que chamam de bico-de-viúva. Tinha feições regulares e boca sensual, de lábios cheios. As velhas, reparando na sua cintura grossa e nos seios crescidos, concluíram que estava grávida e adivinharam que o prisioneiro era o pai da criança. Entretanto, todos os outros não notaram nada, excepto seus olhos.
Não é que não fosse bonita, mas tinha olhos fundos, intensos e de uma espantosa cor dourada, tão luminosos e penetrantes que, ao fixarem uma pessoa, parecia a esta que conseguiam enxergar-lhe o coração, fazendo que desviasse os olhos com medo de que a jovem descobrisse seus segredos. Estava coberta de andrajos, e as lágrimas lhe corriam pelas faces sedosas. O condutor do carro de bois olhou para o meirinho, à espera. Este olhou para o xerife, aguardando o gesto de cabeça. O jovem sacerdote de ar sinistro deu uma cotovelada no xerife, impaciente, mas este não lhe deu atenção. Deixou que o prisioneiro continuasse cantando. Houve uma pausa aflitiva enquanto a linda voz do homem feio mantinha a morte à distância.

Ao crepúsculo o caçador
pegou sua presa,
A cotovia jamais
recuperou a liberdade.
Todos os pássaros e homens
certamente vão morrer,
mas canções podem viver
para sempre.

Quando a canção terminou o xerife olhou para o seu auxiliar e assentiu com a cabeça. O meirinho gritou Hup! e fustigou o flanco do boi com um pedaço de corda. O carroceiro estalou o seu chicote ao mesmo tempo. O boi adiantou-se, o prisioneiro cambaleou e, quando o animal puxou o carro, caiu no ar. A corda esticou e o pescoço do homem quebrou com um estalo.
Ouviu-se um grito e todos olharam para a garota». In Ken Follett, Os Pilares da Terra, 1989, Editorial Presença, 2007, ISBN 978-972-233-788-5.

Cortesia de EPresença/JDACT