Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Havia muitos bosques e lugares ermos, onde um violador
poderia satisfazer seus instintos. Mas, e se a menina fora simplesmente morta
sem ter sido tocada? Seria uma informação que não poderia ser desprezada,
porque o perfil do assassino não seria de um tarado, mas de alguém que tinha
outros planos. Tinha certeza de que saberia isso no fim do Caminho: o começo e
o fim. Entre esses dois pontos, o perigo o acompanharia.
A
flecha amarela estava bem visível e ele caminhava pensativo, quando passou por
um pequeno vilarejo onde viu um homem forjando ferramentas de uso rural. Um
raciocínio lhe passou pela cabeça. Aquele peregrino não devia ter comprado o
ferro para o cajado em Saint-Jean-Pied-de-Port. O crime contra o espanhol fora
cometido em território francês, então seria mais seguro comprar a arma na
Espanha, para dificultar as investigações. Precisava chegar a Larrasoana antes
do anoitecer, mas a curiosidade foi mais forte.
Chegou
ao barracão, onde um homem suado malhava ferros já quentes pelo fogo. Dois
rapazes que pareciam seus filhos o ajudavam. Observou o estoque de produtos
feitos por eles. A maioria eram vitrais, portões, estribos para arreios,
argolas para laços, ferraduras e outros objectos de uso comum na região. Havia
também foices, machados, facões, garfos enormes para levantar o capim e colocar
no cocho. Reparou melhor na maneira
como o cabo de madeira era encaixado no vão superior da foice.
O
homem parou de malhar o ferro e limpou a testa suada com um lenço sujo.
Maurício aproveitou e cumprimentou-o em português: Boa tarde. Buenas tardes. O
senhor poderia, por acaso, me informar se seria difícil afinar o cabo de uma
foice dessas e encaixá-la dentro de um bastão mais reforçado?, e fez gestos
para facilitar a sua explicação em português. A surpresa foi grande. Não
esperava por aquela resposta.
Si, senor. Usted es el segundo
que me lo pide en una semana.
Outro
peregrino, com um capuz que encobria o rosto, havia pedido para que ele
reduzisse a largura de uma foice e a deixasse um pouco mais recta, sem tirar
toda a curva. Ele atendeu ao pedido e fixou a ponta da foice no cajado. O
peregrino explicara que tinha medo de cachorros.
Devia
ser um homem muito forte para carregar um bastão desses por 800 quilómetros, o
senhor não acha?
Si, si, era un hombre enorme.
Joven, cuarenta anos, hablaba poco e despacio. Usted también quiere uno?
Respondeu
que não, agradeceu e seguiu o Caminho ainda mais pensativo. Comprar a arma na
Espanha para cometer um crime na França era coerente, porque seria fácil para o
assassino sumir naquelas montanhas dos
Pirenéus e chegar a algum destino previamente estudado. O que acabara de
descobrir, no entanto, era que o assassino comprara a arma em Roncesvalles e
fora na direcção contrária à do Caminho, com a intenção de ir à França matar o
espanhol. Para Maurício, não fazia sentido ele ter voltado para matar o padre,
correndo o risco de ser identificado.
O
que o levara a voltar a Roncesvalles? Encontrar-se com alguém para informar
sobre a morte do espanhol? Receber novas instruções? Como é que conseguira
entrar tão facilmente na Colegiata? E por onde saíra? Eram muitas as indagações
que teriam de ser respondidas.
Escurecia,
quando Maurício atravessou a Ponte dos Bandidos, na entrada de Larrasoana, um
vilarejo do século XI. Instintivamente apressou o passo e foi directo ao albergue
onde a animação dos peregrinos o ajudou a encontrar outros assuntos.
Desde
Larrasoana até Pamplona, o grande companheiro do peregrino é o rio Arga. A
sombra dos arvoredos, suas águas cristalinas seguem a histórica trilha em direcção
a Pamplona, a cidade da corrida dos touros, restaurantes e monumentos
históricos, fundada 75 anos antes de Cristo, pelo pró-cônsul romano Pompeu, de
onde deriva o seu nome.
O
albergue ficava perto da catedral, no prédio de um antigo colégio da Irmandade
das Adoradoras, que cuidava de moças desajustadas. Depois de acomodar-se,
Maurício saiu para visitar a catedral, entrando por uma porta lateral à
direita, que dá para o claustro, um grande pátio interno com corredores
sustentados por colunas góticas de rara beleza.
Após
as cerimónias religiosas na igreja, os monges saíam por essa porta e entravam
no claustro por outra porta que ficava no ângulo oposto, quando então cantavam
o salmo Pretiosa in
conspectu Domini mors sanctorum ejus (A morte dos santos é preciosa no conceito
de Deus) e por causa desse salmo a porta ficou conhecida como Preciosa.
Em cima dela existe uma moldura que representa a morte e assunção de Nossa
Senhora, com os anjos afugentando alguns judeus que queriam profanar o seu
corpo já sem vida. Esse simbolismo mostra a divisão que havia na cidade, onde
os bairros dos navarros, judeus e
burgueses eram separados por muros e pelo ódio. Conflita também com a tradição
católica de que Nossa Senhora não morreu, mas caiu num sono profundo (dormitio), aos
72 anos de idade, e foi levada aos céus de corpo e alma.
Depois
de visitar o pequeno museu que fica onde antes eram o restaurante e a cozinha
do mosteiro, Maurício entrou na igreja e se deslumbrou com sua beleza.
Esculturais colunas góticas se elevando até ao alto da nave e vitrais coloridos
contrastavam com o silêncio que preenchia todos os espaços. Caminhava devagar
para não perder os detalhes dos quadros, das capelas laterais e dos altares com
colunas barrocas, e chegou ao altar-mor, onde a imagem da padroeira, Santa
Maria Real, era protegida por grades. Absorto no seu deslumbramento, não
percebeu o tempo passar e quase se assustou com o som nostálgico de um órgão
que substituiu o pesado silêncio da igreja. Um grupo de homens saiu de uma sala
que ficava à direita da porta de entrada, em filas de dois, carregando uma vela
acesa e um estandarte de Nossa Senhora.
A
vela e o estandarte foram levados até o altar e o grupo sentou-se nos bancos
diante do órgão. As luzes da igreja se acenderam, trazendo uma luminosidade
suave e fria. Um homem de pé, em frente do altar, puxou o Ora pro nobis domine e o Terço cantado, que o
grupo respondia ao som do órgão.
O
rapaz com a vela e o homem do estandarte encaminharam-se para a lateral da
igreja, e as pessoas que estavam nos bancos se
levantaram e os acompanharam em procissão. A cena e o cântico despertavam
emoções, e assim que terminou a procissão, o coro continuou a ladainha com o miserere nobis.
Ao final, quando os cantores começaram a se levantar, Maurício não
resistiu e perguntou para um deles sobre a cerimónia. O homem se mostrou
solícito: não somos clérigos, mas leigos, e fazemos parte da Congregação do
Rosário dos Escravos de Santa Maria. Há 403 anos, nós repetimos essa cerimónia
da mesma maneira como o senhor viu». In AJ Barros, O Enigma de Compostela,
Luz da Serra, Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.
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