Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) De qualquer modo, agora
pensa em Estha e Rahel como Eles porque, separadamente, eles os dois já não são
o que Eles eram ou aquilo que algum dia pensaram que Eles seriam.
Nunca mais.
As suas vidas têm agora tamanho e
forma. Estha tem a dele e Rahel tem a dela.
Margens, Orlas, Fronteiras,
Bordas e Limites apareceram como um bando de duendes nos seus horizontes
separados. Criaturas pequenas com sombras longas, patrulhando o Fim. Turvo.
Meias-luas suaves formaram-se sob os seus olhos e eles têm a idade que Ammu tinha
quando morreu. Trinta e um.
Nem velhos.
Nem novos.
Mas
de uma idade viável, morrível.
Estha e Rahel quase nasceram num
autocarro: o carro em que Baba, o seu pai, transportava Ammu, a sua mãe, para o
hospital de Shillong para ela dar à luz, avariou na estrada ziguezagueante da propriedade
do chá em Assão. Abandonaram o carro e fizeram sinal a um autocarro apinhado
dos Transportes Estatais. Devido à estranha compaixão dos muito pobres pelos comparativamente
desafogados, ou talvez apenas por notarem a avançadíssima gravidez de Ammu,
alguns passageiros sentados cederam o lugar ao casal e, durante o resto da
viagem, o pai de Estha e Rahel teve de segurar o ventre da sua mãe (com eles lá
dentro) para o impedir de balouçar. Isso foi antes de eles se divorciarem e de
Ammu voltar a viver em Kerala.
Segundo Estha, se tivessem
nascido no autocarro poderiam ter usufruído de viagens de autocarro gratuitas
durante o resto da vida. Ninguém sabia exactamente onde ele obtivera tal
informação, ou como é que sabia tais coisas, mas durante anos a fio os gémeos guardaram
um leve ressentimento contra os pais por estes os terem deserdado de uma vida inteira
de viagens de autocarro gratuitas.
Também acreditavam que, se fossem
atropelados numa passadeira, o Governo pagaria os seus funerais. Tinham a
certeza absoluta de que era para isso que as passadeiras existiam. Funerais
pagos. Claro que em Ayemenem não havia passadeiras onde se pudesse ser atropelado,
nem sequer em Kottayam, a cidade mais próxima, mas eles tinham visto algumas
pela janela do carro no caminho para Cochim, que ficava a duas horas de viagem.
O Governo nunca pagou o funeral de Sophie Mol porque ela não foi atropelada
numa passadeira. O funeral dela foi em Ayemenem, na igreja velha recém-pintada.
Sophie era prima de Estha e Rahel, filha do tio Chacko. Viera em visita de
Inglaterra. Estha e Rahel tinham sete anos quando ela morreu. Sophie Mol tinha
quase nove. Teve um caixão especial de tamanho infantil.
Forrado a cetim.
Com puxadores de bronze
reluzentes.
Ela estava deitada no caixão, com
as suas calças Crimplene amarelas à boca-de-sino, uma fita no cabelo e a sua
adorada malinha go-go made in England. Tinha o rosto pálido e encarquilhado
como o polegar de um dhobi depois de estar demasiado tempo na água a lavar
roupa. A congregação reuniu-se à volta do caixão e a igreja amarela inchou como
uma garganta ao som dos cânticos tristes. Os padres com barbas encaracoladas
balouçavam os turíbulos de incenso suspensos em correntes e nunca sorriam aos
bebés como costumavam sorrir aos domingos.
As velas grandes sobre o altar
estavam arqueadas. As pequenas não.
Uma velha senhora disfarçada de
parente distante (que ninguém reconheceu), mas que frequentemente aparecia
perto dos cadáveres em funerais (uma viciada em funerais? Uma necrófila
latente?), colocou colónia num chumaço de algodão e, com ar devoto e gentilmente
desafiador, salpicou a testa de Sophie Mol. Sophie Mol cheirava a colónia e a madeira
de caixão.
Margaret Kochamma, a mãe inglesa
de Sophie Mol, não deixou Chacko, o pai biológico de Sophie Mol, pôr o braço à
sua volta para a confortar.
A família aglomerou-se num canto.
Margaret Kochamma, Chacko, Baby Kochamma e, ao lado dela, a cunhada, Mammachi,
a avó de Estha e Rahel (e de Sophie Mol). Mammachi era quase cega e usava
óculos escuros sempre que saía de casa. As lágrimas escorriam-lhe por trás dos
óculos e tremiam-lhe no queixo como gotas de chuva num beiral. Parecia pequena
e doente no seu sari branco-sujo e engomado. Chacko era o único filho de Mammachi.
A dor dela doía-lhe. A dele dilacerava-a.
Embora Ammu, Estha e Rahel
tivessem sido autorizados a assistir ao funeral, foram obrigados a permanecer
separados do resto da família. Ninguém olhava para eles.
Estava calor na igreja e as
pontas brancas dos jarros engelhavam e encaracolavam. Uma abelha morreu numa
flor do caixão. As mãos de Ammu tremeram e, com elas, o livro de hinos. Tinha a
pele fria. Junto dela estava Estha, quase a dormir, os olhos doendo e brilhando
como vidro, a face escaldando a pele descoberta do braço de Ammu que tremia ao
segurar o livro de hinos. Rahel, por seu lado, estava bem acordada, ferozmente
vigilante, frágil e exausta na sua batalha contra a Vida Real». In
Arundhati Roy, O Deus das Pequenas Coisas, 1997, Edições ASA, 1998, ISBN 972-411-937-8.
Cortesia de EASA/JDACT