domingo, 28 de junho de 2020

Os Sete. André Vianco. «Os três estavam começando a curtir a adolescência, e Porto Alegre parecia bem mais interessante do que a pacata cidade litoral. Fazer o quê!»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Nobres homens de bem, jamais ouseis profanar este túmulo maldito. Aqui estão sepultados demónios viciados no mal e aqui devem permanecer eternamente. Que o Santo Deus e o Santo Papa vos protejam. Uma caravela portuguesa naufragada com mais de 500 anos é descoberta no litoral brasileiro. Dentro dela, uma estranha caixa de prata lacrada esconde um segredo. Apesar do aviso grafado, com a recomendação de não abri-la, a equipa de mergulhadores que a descobriu decide seguir em frente, e encontra sete cadáveres. Esses corpos misteriosos e cadavéricos são levados para estudos e tudo parece estar sob controle até ao despertar do primeiro deles. Em Os Sete, André Vianco actualiza o mito dos Vampiros, apresentando ao leitor seres poderosos, cada um com uma característica única, mas todos com natureza monstruosa e sanguinária. O resultado é um livro envolvente, repleto de acção e reviravoltas, que em pouco tempo ocupou seu merecido lugar entre os mais importantes livros de terror e fantasia brasileiros». In Sinopse

«Quando eles encontraram aquele navio naufragado, decidiram manter segredo. Outros mergulhadores do vilarejo conheciam o navio, mas o julgavam um amontoado de madeira inútil e podre, sem lhe dar o devido valor. Pensavam que aquela velha caravela não passasse de um reles pesqueiro antigo. Entretanto, Tiago desconfiara do formato daquele amontoado de madeiras. Seu olhar perscrutador, somado a uma intuição inquietante, empurrava-o para um exame mais minucioso. Nos mergulhos seguintes, com a ajuda dos seus companheiros, conseguiu chegar à primeira certeza: aquela embarcação não era um pesqueiro naufragado, pelo menos não um deste século. O mistério alegrou o grupo. Se as expectativas se confirmassem, poderiam se deparar com um tesouro perdido, trancado dentro da velha nave. Precisamos fotografar aquele barco, disse Tiago, tirando os óculos de mergulho. Conhece o Peta? Aquele do bar. Sei. Ele tem câmera fotográfica, câmera de vídeo, tudo para reportagens submarinas. Ele trabalha com isso. Será que ele cobra caro para nos alugar esse equipamento, César? Sei lá. O sujeito é chato, vai querer vir junto. Não, não pode. Se mais gente ficar sabendo... logo vai se armar uma correria em cima do barco velho. César ajudou Tiago a retirar o cilindro das costas, depois foi sua vez de livrar-se do equipamento de mergulho.
Não sei como nunca ninguém se interessou em investigar melhor esse navio. Eu acho que deve ter uma porção de coisas valiosas lá dentro. Tiago deu partida no motor da lancha. César tinha razão. Por outro lado, aquela parte da costa era pouco movimentada. Não tinha nenhum atractivo turístico. E eles só mergulhavam por ali porque era o único lugar que tinham para ir. Raramente sobrava dinheiro para longas excursões. O máximo que podiam fazer era ficar ciscando as pedras das suas próprias praias.
Desde cedo Tiago e César se engraçaram com a prática do mergulho. César nascera ali, em Amarração. Já Tiago chegara à cidade com 12 anos. Seu pai fora destacado para Amarração e teve de trazer toda a família. A mãe, que sempre morara na capital, Porto Alegre, achou a ideia bastante agradável. Já os filhos, nem tanto. Os três estavam começando a curtir a adolescência, e Porto Alegre parecia bem mais interessante do que a pacata cidade litoral. Fazer o quê!
Logo os três se adaptaram. Tiago era o mais novo. Apesar de Tadeu ser seu irmão gémeo, Tiago fora o último a nascer. Sabrina era três anos mais velha. Havia dois anos a irmã estava casada e fazia cinco morava noutro Estado. De vez em quando se falavam por telefone, mas raramente se visitavam. Da família restavam apenas eles dois. O pai fora o delegado titular de Amarração até morrer por complicações coronárias quando Tiago tinha 16 anos. O irmão gémeo morreu dois anos depois, afogado naquela praia. A partir daí a família desmantelou-se.
A mãe morreu de desgosto, definhando mês a mês. Desde a morte de Tadeu, a felicidade sumira-lhe do rosto. Nunca mais voltara a ser a mesma. Tiago também se abalara na ocasião da morte do irmão, mas vendo o estado de sua mãe ficara bastante assustado. Lutava contra a saudade e o desespero, tentando manter a família ainda viva. A irmã fora para São Paulo quando ele tinha 20 anos, ficando sozinho em Amarração. Os tios pagaram a faculdade de Sabrina, deixando-a viver nas suas casas até se casar aos 23, indo morar em Osasco, cidade vizinha a São Paulo. Tiago visitou-a duas vezes, no Natal de 96 e depois em 98, quando seus sobrinhos gémeos nasceram. E aquela fora a última vez em que estiveram frente a frente. Os tios tentaram convencê-lo a migrar para São Paulo também, porém ele não queria deixar seu passado para trás. Sua terra era ali. Não via extraordinárias chances de enriquecimento à frente e também já tinha quase tudo de que precisava. O que tentava a todo custo era lutar contra o tédio que abatia Amarração, tornando-a, invariavelmente, uma cidade apática. Se Tadeu ainda estivesse vivo, certamente estariam se divertindo a valer. Se Tadeu estivesse vivo, os dois estariam completando 25 anos na semana seguinte.
A lancha já havia coberto os dois quilómetros que os separavam da costa. César apagou o motor, deixando a embarcação aproximar-se deslizante, sem barulho. Recolheu a hélice, erguendo o motor. O mar estava bastante calmo, sem muitas ondas. Aproximaram-se da praia com bastante tranquilidade. Pularam da lancha e a arrastaram para a areia. Agarraram as cordas e, com muito esforço, arrastaram-na para longe da água». In André Vianco, Os Sete, 1999, Editora Aleph, 2016, ISBN 978-857-657-339-5.

Cortesia de EAleph/JDACT