Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Há 403 anos...?! A mesma cerimónia todos os dias?!... Sim.
Antes, nós dávamos a volta na catedral, do lado de fora, mas a cidade cresceu e
hoje rezamos o Terço aqui dentro. Era um privilégio usufruir da beleza daquele
templo e participar de cerimónias centenárias como a que assistira, mas iam
fechar a igreja e ele teve de sair. O anoitecer estava chegando e estava
cansado. Saiu com a sensação de que 403 anos iriam aumentar o peso da sua
mochila. Caminhou até à rua do encierro. Todos
os anos, durante as festas de São Firmino, no período de 6 a 24 de Julho, a rua
do encierro
é palco da famosa corrida de Pamplona, quando pessoas arriscam a
vida correndo um trajecto de 800 metros na frente de touros enfurecidos.
Não
sabia porque a procissão na catedral não saía da sua cabeça, quando passou em
frente de uma livraria. Hesitou uns minutos e entrou. Os livros estavam dispostos por
assunto e depois de várias perguntas ao vendedor, comprou um opúsculo sobre as
heresias da Idade Média.
No
dia seguinte, levantou-se bem cedo porque, embora até Puente la Reina fosse
apenas 23,5 quilómetros, era um trecho difícil. Tão difícil como vencer a
subida do Monte dei Perdon era descer os fortes declives escorregadios e
pedregosos.
Uma
das lendas mais bonitas do Caminho teve origem na subida do Perdon. Naquela
época, os povoados eram muito distantes uns dos outros, e um peregrino se viu
sem água na subida do morro. Já não aguentava mais seguir em frente e se sentia
desfalecer sob o sol inclemente. Rezava para que Deus o ajudasse a chegar a uma
fonte ou que alguém aparecesse com um pouco de água. Estava esgotado, sem
forças, quando o Diabo apareceu diante dele e prometeu que, se renegasse à sua
fé e desistisse da peregrinação, uma fonte de água cristalina e fresca ia
jorrar daquele lugar. A tentação era grande e o peregrino já quase não aguentava
mais o sofrimento, mas resistiu e não aceitou. O Diabo usou de todos os
recursos para convencê-lo, mas o peregrino respondia que preferia morrer de
sede a renegar a sua fé.
O
Diabo ficou furioso e desapareceu no meio de uma explosão, soltando um forte
cheiro de enxofre. Depois que o Diabo se foi, o peregrino agradeceu a Deus por
ter resistido à tentação. Nesse instante, outro peregrino se aproximou e lhe mostrou a fonte. Sedento e quase sem
conseguir andar, arrastou-se até ao lugar e viu a água fresca jorrando de uma
pedra. Depois de matar a sede, agradeceu o bondoso peregrino, que sorriu para
ele e seguiu o Caminho.
Dias
depois, chegou a Compostela. Entrou na igreja para assistir à Missa dos
Peregrinos e quando olhou para a imagem de São Tiago reconheceu o peregrino que
lhe mostrara a fonte de água. Fora o próprio santo que lhe aparecera, porque
não renegara a sua fé e não desistira da peregrinação. A fonte passou a ser
conhecida como Fuente
del Reniego, Fonte da Renegação.
Maurício
também estava cansado e com sede, mas tinha água suficiente. Sabia que a Fuente del Reniego
havia secado e o Caminho tinha às vezes longas distâncias, por isso
tomava precauções para evitar a fome e a sede em trechos desabitados e longos.
Mas o lugar parecia mesmo amaldiçoado e o Diabo estava ali esperando por ele,
como se quisesse testá-lo também.
Encostado
no barranco, perto de onde antes era a fonte, um peregrino aproveitava a sombra
para descansar. E o cheiro forte do enxofre que o Diabo deixara na lenda entrou
pela sua alma, assim que o reconheceu. Aproximou-se. O peregrino continuou
sentado, sem nada dizer, e o olhava com um sorriso inexpressivo. Maurício
chegou mais perto, tirou a mochila das costas, colocou-a no chão e se sentou.
Tinha
mesmo a impressão de que ia encontrá-lo pelo Caminho. Mas o senhor escolheu um
lugar apropriado para a gente falar do Diabo. Entendi que havia um recado,
quando me mandou verificar se o assassino havia judiado da menina. O perfil do
assassino. Lembra-se da sua preocupação?
Maurício
respirou fundo e respondeu com outras perguntas:
O assassino não mexeu na menina? Nem tentou? Descobriram alguma
pista? Não há sinais de violência
sexual. Nem mesmo a calcinha dela foi tirada». In AJ Barros, O Enigma de Compostela, Luz da Serra,
Geração Editorial, 2009, ISBN 978-856-150-127-3.
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GEditorial/JDACT