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de wikipedia e jdact
«Em 1815, um dos mais abastados mercadores
de pannos da rua das Flores na cidade do Porto, era o senhor Antonio José
Silva. E a 23 d'agosto, do mesmo anno, o negociante da rua das Flores que mais
suava, e bufava afflicto com a calma, era o mesmo senhor Antonio José Silva. O senhor Antonio, como
os seus caixeiros o chamavam, tinha razão para suar. As bochechas balofas e
tremulas, dilatadas pelo calor do estio, ressumavam-lhe um succo oleoso, que
descia em rêgos pelos tres rofêgos da barba, e vinha adherir a camisa ás duas
grandes esponjas, que formavam os seios cabelludos do nosso amigo attribulado.
O senhor Silva inquieto, e resfollegando como um
hippopótamo, passeava no seu escriptorio. O seu traje era muito simples: andava
de cuecas, e alpercatas de estôpa com sola de cortiça. Este vestido, com quanto
singelissimo, e o primeiro talvez que se seguiu ao que trajou Adão no Paraizo,
dava-lhe ares d'um sátyro voluptuosamente gordo.
O negociante representava cincoenta e cinco annos, bem
conservados. No ôlho direito tinha muita vida; o esquerdo, porém, n'esta
occasião tinha um tersolho, e inflammado, de mais a mais, pelo calor.
Além do dito, o senhor Silva estava soffrendo um segundo
tersolho no espirito. Era uma paixão, uma paixão d'alma, a mocidade na velhice,
essa ancia impotente d'um coração, que
quer romper os tecidos atrophiados de cincoenta e cinco annos para dar quatro
pulos em pleno ar.
Quem era a victima d'esta paixão impetuosa? Uma menina de quinze annos, que a leitora enjoada das
indecentes cuecas do senhor Silva, póde vêr, no segundo andar d'esta mesma
casa, sentada a costurar na varanda, com uma gata malteza no regaço, e um
papagaio ao lado, que lhe depenica os sapatos de cordovão.
É uma bonita menina, para quem gosta d'um rosto oval, olhos
azues, leite e rosas na face, labios acerejados e pequenos, dentes como
perolas, olhar alegre e penetrante. Conversa com o papagaio, e o metal da sua
voz tem aquelle timbre sonoro e puro, que nos faz jurar na belleza de quem
falla, sem lhe vermos as feições. O papagaio salta-lhe á mão, e esta mão é
pequena, dedos longos, rosados nas extremidades, transparentes como o collo de
sua dona, onde o proprio Lucifer de Gautier choraria uma segunda lagrima, por
se vêr impossibilitado de armar ás boas mulheres (quando é de suppôr que lhe
não vão lá ter as peores...)
Concordemos em que Rosa Guilhermina era uma bonita moça, e desculparemos
a paixão fatal do infeliz negociante, que, no andar de baixo, está fumegando
por todos os orificios, e distillando por todos os póros.
Como veio esta menina para a casa do negociante? Da
seguinte maneira:
Quatro annos antes, o arcediago de Barroso, padre Leonardo
Taveira, amigo velho do senhor Silva, em expansiva conversa com o seu amigo,
n'um domingo de tarde, nas hortas de Campanhã (onde semanalmente saturavam as
respectivas massas adiposas com o excellente vinho verde de Cabeceiras de Basto),
quatro annos antes, vinha eu dizendo, fallava assim, com o seu amigo, o
rubicundo arcediago: sabes tu, Silva, que me está dando bastante cuidado o
futuro de Rosa! Deixa-te disso. Não tens tu, em minha mão, um bom patrimonio
que lhe dês?! Acho que vinte mil cruzados, afóra o juro de cinco por cento, ha
dez annos, capitalisado no proprio, a vencer até que ella faça os vinte e
cinco, acho eu que é um dote de lhe tirar o chapéo. Bom dote é; mas isso não é
o que me dá cuidado. O que eu queria para minha filha é um bom marido... Ó
homem, já tratas disso!? Que idade tem a tua filha? Tem onze annos; d'aqui a
três é mulher, e póde talhar futuros por sua conta e risco. É o que eu não
quero. A pequena está em mestra-de-dentro; mas isto de mestras ensinam a cozer
e a bordar, mas não sabem adivinhar o coração d'uma rapariga, que..., emfim,
Silva, vou ser franco comtigo...
Diz, padre Leonardo... Que é filha de tal pae e de tal
mãe... Eu tenho sido o que tu sabes... Isso lá é verdade..., tu tens sido
levadinho da breca com o gado de contrabando... E a mãe, se queres que te diga
a verdade, tinha uma perfeita embocadura... Diz-m'o a mim, Leonardo! Era uma
namoradeira dos quatro costados... Mas, emfim, está casada, e já não é a mesma.
Caro me custou o casamento... Isso custou! O que tu déste ao francez p'ra
montar a loja de livros, ainda que não rendesse senão a sete por cento, podia
hoje montar a reis..., deixa vêr..., quatro vezes sete vinte e oito, vão dous,
com cinco cifras, faz... faz...
Aguas passadas..., não fallemos n'isso. Agora o que me
importa é a rapariga, já que fiz a asneira de a procurar na roda... Tira-me o
somno, Silva! Lembra-me ás vezes que esta pequena ha de ser a disciplina com
que hei de ser castigado por muitas asneiras que fiz...
Isso lá é verdade. Diz o dictado: Onde se fazem, ahi se
pagam. Já vem dos velhos a experiencia... Sabes tu que mais? Casa a
rapariga assim que ella pozer as ventas no ar a contar os ventos. Não lhe dês
tempo a namoricos. Janella fechada, e marido entre mãos, era o systema de minha
mãe, que Deus haja, e minhas irmãs não deram desgosto á sua familia. Tens
razão, Antonio; mas quando o diabo está atraz da porta, não vale nada fechar a
janella... Olha lá... Queres tu casar com a minha Rosa?
Homem, essa!..., tu serás o espirito ruim que me appareces
em corpo d'homem? Não vês que tenho cincoenta feitos, e que nunca me deu na
cabeça a asneira de me casar?
Alguma vez ha de ser a primeira...
Isso lá é verdade; mas cada qual mede-se com as suas
forças, e eu já não estou homem para tropelias. O que eu quero é comer bem, é
beber-lhe melhor. Isto de creanças, casadas com velhos, não provam bem...
Estás enganado com o mau exemplo da tua visinha Anna...
Que pôz na cabeça do marido um chinó, porque elle era calvo..., e
eu não estou menos calvo que o pobre João Pereira, que deu com o negocio em
pantana, por causa da mulher...» In Camilo Castelo Branco, A Filha do
Arcediago, 1854, Publicações Europa-América, 2000, ISBN 978-972-100-889-2.
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