quarta-feira, 17 de junho de 2020

Os Pilares da Terra. Ken Follett. «Os garotos chegaram cedo para o enforcamento. Ainda estava escuro quando os primeiros três ou quatro esgueiraram-se para fora do galpão, silenciosos…»

Cortesia de wikipedia e jdact

«Na noite de 25 de Novembro de 1120, o White Ship partiu para a Inglaterra e afundou na costa de Barfleur com toda a tripulação menos um homem... A embarcação era a última palavra em transporte marítimo, equipada com todos os recursos à disposição dos construtores navais daquele tempo... A notoriedade desse naufrágio deve-se ao grande número de pessoas notáveis a bordo; além do filho e herdeiro do rei, havia dois bastardos reais, diversos condes e barões, e a maioria, da família real... Seu significado histórico é que deixou Henrique sem um herdeiro evidente... Sua consequência final foi a sucessão disputada e o período de anarquia que se seguiu à morte de Henrique». In Magna Carta

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Os garotos chegaram cedo para o enforcamento.
Ainda estava escuro quando os primeiros três ou quatro esgueiraram-se para fora do galpão, silenciosos como gatos com suas botas de feltro. Uma fina camada de neve cobria a cidadezinha, lembrando uma nova demão de tinta, e suas pegadas foram as primeiras a macular a superfície perfeita. Escolheram seu caminho por entre a barafunda de casebres de madeira e ao longo das ruas de lama congelada até à praça do mercado, onde a forca estava à espera.
Os meninos desprezavam tudo o que os mais velhos valorizavam. Zombavam da beleza e faziam pouco da bondade. Caíam na risada à vista de um aleijado e ao encontrarem um animal ferido o apedrejavam até à morte.
Vangloriavam-se dos ferimentos e exibiam as cicatrizes com orgulho, reservando especial admiração por mutilações: um garoto sem um dedo poderia ser o rei deles. Amavam a violência. Correriam milhas para ver sangue, e nunca perdiam um enforcamento.
Um dos meninos urinou na base do cadafalso. Outro subiu os degraus, apertou o pescoço com os polegares e caiu bruscamente, contorcendo o rosto numa horrível paródia de estrangulamento: os outros gritaram de entusiasmo, e dois cachorros entraram correndo na praça, latindo. Um menininho começou a comer descuidadamente uma maçã; um dos mais velhos lhe deu um soco no nariz e tirou-lhe a fruta. O menininho aliviou seus sentimentos jogando uma pedra pontuda num cachorro, o que fez com que o animal voltasse por onde viera, uivando. Depois nada mais havia para fazer, e todos se agacharam no piso seco do pórtico da grande igreja, esperando que algo acontecesse.
Luzes de velas bruxuleavam por trás das venezianas das sólidas casas de madeira e pedra construídas em torno da praça de comerciantes e artífices prósperos, enquanto as criadas de cozinha e os aprendizes acendiam o fogo, esquentavam a água e faziam mingau. A cor do céu passou de preto para cinza. Os habitantes da cidade saíam de casa, baixando a cabeça para passar nos portais, embrulhados em pesados mantos de lã grosseira, e, tremendo de frio, iam até ao rio apanhar água.
Logo um grupo de rapazes, cavalariços, operários e aprendizes, entrou na praça, andando com atitude arrogante. Expulsaram os meninos do pórtico da igreja com sopapos e pontapés, depois se encostaram nos arcos de pedra trabalhada, coçando-se, cuspindo no chão e falando com estudada confiança sobre morte por enforcamento. Se ele tiver sorte, disse um, quebrará o pescoço assim que cair, uma morte rápida e sem dor; mas se isso não acontecer, ele ficará pendurado ali, tornando-se vermelho, abrindo e fechando a boca como um peixe fora d'água, até morrer asfixiado.
Outro afirmou que morrer assim pode levar o tempo necessário para um homem caminhar uma milha. Um terceiro retrucou que podia ser pior ainda, que já vira um enforcamento em que o pescoço do condenado passou de um pé de comprimento.
As velhas formaram um grupo no lado oposto da praça, o mais longe possível dos rapazes, que provavelmente gritariam comentários vulgares para suas avós. Essas sempre acordavam cedo, mesmo que já não tivessem bebés ou filhos pequenos com que se preocupar, e eram as primeiras a ter o fogo aceso e a casa varrida. Sua líder reconhecida, a robusta viúva Brewster, juntou-se a elas, rolando um barril de cerveja tão facilmente quanto uma criança rola seu arco. Antes que pudesse abri-lo, havia uma pequena multidão de fregueses esperando com jarros e baldes. O meirinho do xerife abriu o portão principal, deixando entrar os camponeses que moravam no subúrbio, nas casas de meia-água encostadas na muralha da cidade. Uns traziam ovos, leite e manteiga fresca para vender, outros vinham para comprar cerveja ou pão, e havia os que ficavam na praça do mercado esperando o enforcamento». In Ken Follett, Os Pilares da Terra, 1989, Editorial Presença, 2007, ISBN 978-972-233-788-5.

Cortesia de EPresença/JDACT