Cortesia
de wikipedia e jdact
«Na
noite de 25 de Novembro de 1120, o White Ship partiu para a Inglaterra e
afundou na costa de Barfleur com toda a tripulação menos um homem... A embarcação
era a última palavra em transporte marítimo, equipada com todos os recursos à
disposição dos construtores navais daquele tempo... A notoriedade desse naufrágio
deve-se ao grande número de pessoas notáveis a bordo; além do filho e herdeiro
do rei, havia dois bastardos reais, diversos condes e barões, e a maioria, da
família real... Seu significado histórico é que deixou Henrique sem um herdeiro
evidente... Sua consequência final foi a sucessão disputada e o período de
anarquia que se seguiu à morte de Henrique». In Magna Carta
1123
Os garotos chegaram cedo para o
enforcamento.
Ainda estava escuro quando os
primeiros três ou quatro esgueiraram-se para fora do galpão, silenciosos como
gatos com suas botas de feltro. Uma fina camada de neve cobria a cidadezinha,
lembrando uma nova demão de tinta, e suas pegadas foram as primeiras a macular
a superfície perfeita. Escolheram seu caminho por entre a barafunda de casebres
de madeira e ao longo das ruas de lama congelada até à praça do mercado, onde a
forca estava à espera.
Os meninos desprezavam tudo o que
os mais velhos valorizavam. Zombavam da beleza e faziam pouco da bondade. Caíam
na risada à vista de um aleijado e ao encontrarem um animal ferido o apedrejavam
até à morte.
Vangloriavam-se dos ferimentos e
exibiam as cicatrizes com orgulho, reservando especial admiração por mutilações:
um garoto sem um dedo poderia ser o rei deles. Amavam a violência. Correriam
milhas para ver sangue, e nunca perdiam um enforcamento.
Um dos meninos urinou na base do
cadafalso. Outro subiu os degraus, apertou o pescoço com os polegares e caiu
bruscamente, contorcendo o rosto numa horrível paródia de estrangulamento: os
outros gritaram de entusiasmo, e dois cachorros entraram correndo na praça,
latindo. Um menininho começou a comer descuidadamente uma maçã; um dos mais
velhos lhe deu um soco no nariz e tirou-lhe a fruta. O menininho aliviou seus sentimentos
jogando uma pedra pontuda num cachorro, o que fez com que o animal voltasse por
onde viera, uivando. Depois nada mais havia para fazer, e todos se agacharam no
piso seco do pórtico da grande igreja, esperando que algo acontecesse.
Luzes de velas bruxuleavam por trás
das venezianas das sólidas casas de madeira e pedra construídas em torno da praça
de comerciantes e artífices prósperos, enquanto as criadas de cozinha e os
aprendizes acendiam o fogo, esquentavam a água e faziam mingau. A cor do céu
passou de preto para cinza. Os habitantes da cidade saíam de casa, baixando a cabeça
para passar nos portais, embrulhados em pesados mantos de lã grosseira, e, tremendo
de frio, iam até ao rio apanhar água.
Logo um grupo de rapazes,
cavalariços, operários e aprendizes, entrou na praça, andando com atitude
arrogante. Expulsaram os meninos do pórtico da igreja com sopapos e pontapés,
depois se encostaram nos arcos de pedra trabalhada, coçando-se, cuspindo no chão
e falando com estudada confiança sobre morte por enforcamento. Se ele tiver
sorte, disse um, quebrará o pescoço assim que cair, uma morte rápida e sem dor;
mas se isso não acontecer, ele ficará pendurado ali, tornando-se vermelho,
abrindo e fechando a boca como um peixe fora d'água, até morrer asfixiado.
Outro afirmou que morrer assim
pode levar o tempo necessário para um homem caminhar uma milha. Um terceiro
retrucou que podia ser pior ainda, que já vira um enforcamento em que o pescoço
do condenado passou de um pé de comprimento.
As velhas formaram um grupo no
lado oposto da praça, o mais longe possível dos rapazes, que provavelmente
gritariam comentários vulgares para suas avós. Essas sempre acordavam cedo,
mesmo que já não tivessem bebés ou filhos pequenos com que se preocupar, e eram
as primeiras a ter o fogo aceso e a casa varrida. Sua líder reconhecida, a
robusta viúva Brewster, juntou-se a elas, rolando um barril de cerveja tão
facilmente quanto uma criança rola seu arco. Antes que pudesse abri-lo, havia
uma pequena multidão de fregueses esperando com jarros e baldes. O meirinho do
xerife abriu o portão principal, deixando entrar os camponeses que moravam no
subúrbio, nas casas de meia-água encostadas na muralha da cidade. Uns traziam
ovos, leite e manteiga fresca para vender, outros vinham para comprar cerveja
ou pão, e havia os que ficavam na praça do mercado esperando o enforcamento». In Ken
Follett, Os Pilares da Terra, 1989, Editorial Presença, 2007, ISBN
978-972-233-788-5.
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