«(…)
Audrianna entrou na
sala e colocou a mala numa cadeira.
Daphne
estava sentada perto da lareira, com o cabelo muito claro completamente solto e
já escovado para a noite como um rio de seda. Vestia um roupão que caía solto
pelo corpo esguio e alto. Ergueu os olhos do livro. Um sorriso de alívio surgiu
no rosto adoravelmente delicado. Os olhos cinzas depararam com a bainha
enlameada e a mala de Audrianna. Está cansada e provavelmente com fome, disse. Vá
à cozinha comer alguma coisa. Era típico de Daphne não reclamar tão quanto era
típico que, se ela quisesse, teria motivos de sobra para isso. Audrianna
atravessou a sala atrás da prima, até à curta passagem que dava na cozinha.
Originalmente uma estrutura separada, a cozinha fora ligada à casa através
daquele corredor estreito na mesma altura em que se aumentara a estufa. Na
grande lareira da cozinha luziam apenas algumas brasas, e Daphne cuidou de
alimentar o fogo. Quando lhe entreguei a sua canção nova, Mr. Trotter deu-me
dinheiro para que eu desse a você. Vinte xelins. Mr. Trotter era editor de
partituras musicais em Londres e concordara em publicar algumas canções que
Audrianna compusera. É muito mais do que eu esperava.
Ele disse
que O meu amor inconstante vendeu particularmente bem. Disse para que eu
lhe dissesse que as suas músicas tristes dão mais dinheiro do que as outras. Não
tenho certeza se quero escrever só canções tristes, mas vou tentar compor mais
algumas. Certamente qualquer coisa que escreva que vier do coração terá
sucesso. O meu amor inconstante vendeu bem por causa disso. Possivelmente era
verdade. Quando Audrianna compusera a canção, estava se sentindo devastada com
a inconstância de Roger, depois de ele a ter rejeitado por causa da desgraça do
pai. As lágrimas a cegavam enquanto trabalhava na melodia.
Daphne
abriu um armário, examinando o interior. Acho que Mrs. Hills planeia comer o
resto deste fiambre amanhã ao jantar, por isso é melhor não roubá-lo. Deixe
isso aí que arranjo outra coisa. Um pouco de queijo e pão é o suficiente. Tem
certeza? Se eu tivesse chegando de viagem... Pão e queijo está óptimo. Daphne
serviu a comida, sentando-se depois em frente à Audrianna, do outro lado da
mesa de trabalho. Foi a Londres visitar sua mãe? Sabe que só a visito quando
combinamos antes, e quase sempre ao domingo. Eu não sei de nada, e nem mesmo
sobre essa sua aventura. Não me havia dito uma palavra. Nem um recado. Se
Lizzie não tivesse reparado que tinha feito as malas, eu poderia achar que
tinha caído no rio. Então Daphne sempre ia reclamar. Tinha sido realmente
indelicado partir sem dizer nada, mas uma palavra que dissesse teria dado
oportunidade a muito mais protesto do que desejava.
Devo
lembrar-lhe da regra para se viver nesta casa, Daphne. Uma das normas mais
importantes é não nos intrometermos nas histórias nem nas vidas umas das
outras. Aquela casa, composta por mulheres solteiras e independentes, mantinha
a civilidade e a segurança graças à regra de Daphne. Assim como os códigos dos
monges de antigamente, os preceitos da regra governavam seu comportamento e
ajudavam-nas a evitar o tipo de desavença que poderia facilmente surgir num
ambiente assim. No momento em que chegou, a regra lhe parecia descabida, mas
logo passou a apreciar sua sabedoria.
Tem
razão. É uma boa parte da regra. Uma parte essencial, concedeu Daphne. Não impede,
porém, que nos preocupemos, nem que cuidemos umas das outras como irmãs. Razão
pela qual a regra inclui também a indicação de que, se nos ausentarmos durante
grande período, é necessário informar as outras para que não se preocupem. Não
a repreendia, apesar das palavras. Sua voz era suave demais para ser
considerada uma censura. Havia nela preocupação, e uma delicada compaixão, e talvez um pouquinho
de mágoa, como se a discrição de Audrianna implicasse uma perda de confiança. Audrianna
manteve-se empenhada em comer. Não se atrevia a olhar para Daphne. A prima era
detentora de uma sabedoria de vida que excedia em muito o esperado de uma
mulher que ainda não chegara aos trinta. Seria difícil conseguir esconder seu
desânimo se Daphne a olhasse nos olhos». In
Madeline Hunter, Deslumbrante, Edições ASA, 2013, ISBN 978-989-232-372-5.
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