Leiria, Maio de 1137
«(…) A meio da manhã, Zaida viu aparecer
ao longe o novo Castelo de Leiria, situado numa elevação junto ao rio Lis. Ela,
Chamoa e Mem viajavam na carroça do almocreve, enquanto uma sorridente Fátima montava
o Sultão, seguida por uma companhia de dez soldados, que o bispo de Coimbra
destinara que os acompanhassem.
Filha, porque sorri
vossa irmã?
Meses antes, durante uma refeição
em casa das princesas, Fátima louvara a beleza e a imponência do novo Castelo
de Leiria, sugerindo que elas o deviam visitar. Mortinha por uma viagem, Chamoa
propusera uma ida a quatro, mas Fátima recordara o estado de cativeiro das duas
princesas, acrescentando de forma subtil que, estando Afonso Henriques ausente,
só o bispo Bernardo as podia autorizar. Nesse caso, vamos falar com ele!, exclamara
Chamoa.
Apesar do óbvio incómodo de Mem, sempre
inquieto quando o bispo e Zaida se aproximavam, Chamoa arrastara esta última até
à Sé, alegando que o prelado a adorava e certamente aprovaria. Durante algum tempo,
o bispo Bernardo resistiu e foram necessárias várias visitas amáveis de Zaida,
até ele dar finalmente a permissão desejada para a viagem dos três, desde que
vigiados pelos soldados. Partiram em Maio e a jornada demorou dois dias. Quando
entraram no castelo, Zaida reparou que o olhar de Fátima brilhava de emoção, o
que só se justificava se Abu Zhakaria andasse por perto.
Filha,
ficai atenta...
À porta de Leiria, Chamoa
mostrou-se deslumbrada com as suas muralhas e ameias, onde as pedras
graníticas, ainda esbranquiçadas e sem a usura do tempo, resplandeciam de brilho
ao sol. Depois, referiu Paio Guterres, o alcaide â quem chamavam Cipião Africano,
pois era um hábil guerreiro que lembrava o célebre romano. Será bonito? perguntou
ela, pela décima vez. Mem sussurrou a Zaida que o dito era feio como os trovões,
mas era melhor não estragar a surpresa. O almocreve temia um imprevisto e decidiu
precaver-se, colocando ao ombro o seu arco e a aljava, carregada de flechas. De
seguida, murmurou a Zaida: se Zhakaria atacar, temos de nos esconder. A princesa
mais nova olhou para Chamoa, mas Mem abanou a cabeça, dando a entender que a galega
não iria com eles. Pouco depois, o alcaide veio recebê-los à entrada da
alcáçova e, num frenesim esperançoso, Chamoa desatou a parlamentar com ele, volteando
a dalmática e batendo as pestanas.
Filha, é tão tola…
Paio
Guterres, entusiasmado com o charme ostensivo de Chamoa e talvez já fantasiando
com uma possível sorte nocturna, convidou-a a instalar-se numa casa junto à
sua, mas destinou às princesas mouras outra habitação na almedina. Enquanto Chamoa
aceitava, lisonjeada, Zaida agradou-se em silêncio com aquela separação forçada.
Ela não sabia ainda o que esperar e Fátima também não a elucidou. Depois da
ceia, a mais velha das princesas avisou Zaida e Mem de que ia passear junto às muralhas
do Castelo de Leiria e, se fosse caso disso, viria avisá-los. No entanto,
Fátima nunca reapareceu, quem o fez foi uma sorridente Chamoa, que ao entrar na
casa deles declarou, divertida: tive saudades vossas! Mem e a princesa moura
trocaram um olhar angustiado, enquanto a minha cunhada contava que recusara os avanços
de Paio Guterres, por ele ser tão feio. Contudo, ao vê-los tão tensos, calou-se».
In
Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, A Vitória do Imperador, A Relíquia
Sagrada, Casa das Letras, LeYa, 2016, ISBN 978-989-741-461.
Cortesia
de CdasLetras/LeYa/JDACT