«(…) O Novo Mundo era um plágio do Velho, mas com algumas mudanças cruciais.
Estendendo-se de Martha’s Vineyard à Nova Escócia, e incorporando partes dos actuais
Rhode Island, Connecticut, New Hampshire e Maine, a comunidade bíblica se
empoleirava à margem da natureza selvagem. Desde o primeiro momento ela se
batia com outra matéria-prima americana: o selvagem diabólico, o terror moreno
ali no quintal. Mesmo os postos menos isolados da colónia sentiam a própria
fragilidade. Os americanos de então viviam não apenas na fronteira, mas fora do
tempo. Os residentes da baía de Massachusetts nem sempre sabiam quem ocupava o
trono ao qual deviam obediência; em 1692 não conheciam os termos do seu governo
e tinham passado três anos sem governo algum, quando uma nova Carta chegou de
navio. Durante três meses de 1691 não tinham certeza do ano em que viviam,
porque o papa aprovou o calendário gregoriano, mas a Nova Inglaterra rejeitou-o,
continuando a datar o começo do ano em 25 de Março. (Quando as bruxas atacaram as
suas primeiras vítimas na aldeia de Salem, era 1691 na Nova Inglaterra e 1692
na Europa).
Em
assentamentos isolados, em casas sombrias, os moradores da Nova Inglaterra
viviam no escuro, onde vicejam o sagrado e o oculto. Seus medos e caprichos
eram pouco diferentes dos nossos. Mas o escuro deles era um escuro diferente. O
céu sobre a Nova Inglaterra era de um negro bíblico, tão negro que era difícil
seguir uma trilha à noite. Em toda a Nova Inglaterra seria difícil encontrar
mais que umas poucas almas para quem o sobrenatural não fizesse parte da
cultura, assim como o próprio diabo. Um ano depois de passada a crise de
bruxaria, Cotton Mather, um dos homens mais cultos dos Estados Unidos, visitou
Salem. Ele perdeu as anotações do seu sermão, que apareceram um mês depois,
espalhadas nas ruas de uma cidade vizinha. Concluiu que agentes diabólicos as
tinham roubado. Não se duvidava da realidade da bruxaria, como também não se
duvidava da verdade literal da Bíblia. Ao lado da fé, a bruxaria servia a um
propósito útil. Aquilo que irritava, confundia, humilhava, tudo se dissolvia no
seu caldeirão. Para algumas das coisas que assolavam o habitante da Nova
Inglaterra do século XVII temos explicações modernas. Para outras, não. O mundo
do século XVII parecia cheio de acontecimentos inexplicáveis, não muito
diferentes daqueles do mundo moderno automatizado.
Mesmo
aqueles que não ocupavam o alto plano espiritual dos puritanos eram susceptíveis
ao que Mather chamou de doenças da perplexidade. Antes e depois dos
julgamentos, a Nova Inglaterra se banqueteava com histórias sensacionais de
mulheres ousadas que demonstravam fortaleza sob ataques indígenas. Essas
narrativas de cativeiro forneceram algo como um padrão para a bruxaria. Salem é
em parte a história do que acontece quando um conjunto de perguntas sem
respostas encontra um conjunto de respostas inquestionáveis. Rica em seres
humanos que mudam de forma, voos fantásticos, madrastas más e feno enfeitiçado,
a crise de Salem é parecida com outro gênero do século XVII: o conto de fadas.
Salem toca naquilo que é irreal, mas de forma alguma mentiroso; no seu cerne
estão desejos frustrados e ansiedades não expressas, pulsões sexuais
subjacentes e terror rude. O episódio se desenrola naquele espaço fértil de
sonho entre o fantástico e o absurdo. Houve julgamentos de bruxas antes na Nova
Inglaterra, mas não precipitados por uma coorte de meninas adolescentes e pré-adolescentes
enfeitiçadas. Também como um conto de fadas, Salem é uma história em que as
mulheres, mulheres determinadas e mulheres medrosas, subservientes, matronas
correctas e adolescentes transviadas, desempenham papel decisivo. Um grupo de
meninas muito jovens, privadas de direitos, desencadeou a crise, revelando forças
que ninguém podia conter e que ainda hoje espantam, que podem ou não ter algo a
ver com a razão para se transformar uma história de mulheres em perigo numa
história de mulheres perigosas.
Mulheres
são as vilãs nos contos de fadas, qual o significado de sentar no próprio
emblema do humilhante trabalho doméstico e sair voando? Mas esses contos são
também o território da juventude. Em todos os níveis, a crise de Salem está
ligada à adolescência, essa idade imoderada e vulnerável na qual saltamos a
fronteira entre o racional e o irracional. A crise começou com duas meninas pré-pubescentes
e logo passou a envolver um grupo de adolescentes consideradas enfeitiçadas por
parte de indivíduos que a maioria delas nunca havia visto. As meninas vinham de
uma aldeia que clamava por autonomia. Durante anos a Coroa tentara impor as suas
autoridades à Nova Inglaterra, e as últimas delas haviam sido desbancadas pelos
cidadãos importantes de Massachusetts, entre os quais se encontravam quase
todos os juízes de bruxaria. Eles tinham toda a razão de solicitar protecção da
Inglaterra contra indígenas saqueadores e franceses astutos. Mas, embora
lamentassem sua vulnerabilidade, os colonos não aceitavam supervisão. Desde o
começo se manifestaram contra a interferência, prometendo rejeitá-la quando
ocorresse e se sentindo humilhados quando ocorreu. A relação com a terra-mãe
evoluíra para uma querela constante; durante algum tempo as pessoas que deviam
proteger os colonos pareciam persegui-los. As autoridades de Massachusetts também
sofriam de outra ansiedade que viria a desempenhar o seu papel em 1692: toda
vez que olhavam para trás, com admiração pelos homens que haviam fundado sua
comunidade temente a Deus, cada vez que louvavam aquela grande geração, eles próprios
ficavam um pouquinho menores». In Stacy Schiff, As Bruxas, Editora
Marcador, 2017, ISBN 978-989-754-310-4.
Cortesia
de EMarcador/JDACT