«(…) No meu azedume, procuro
muitas vezes razões para os condenar, a fim de melhor me condenar. Sim, porque
eu também sou como eles, em muitas coisas. Durante muito tempo pensei que
escapara, mas à medida que o tempo passa verifico que não sou melhor, que sou
até um bocadinho pior, pois vejo mais claramente do que eles jamais viram e,
contudo, sou impotente, incapaz de modificar a minha vida. Quando olho para
trás, para o já vivido, tenho a impressão de que nunca fiz nada de minha livre vontade
e sim, sempre, por pressão de outros. Ê costume considerarem-me um tipo
aventureiro, mas nada poderia estar mais longe da verdade. As minhas aventuras
foram sempre casuais, foram-me sempre impostas, foram sempre mais suportadas do
que empreendidas. Sou da própria essência desse altivo e fanfarrão povo nórdico
que nunca teve a mínima noção da aventura, mas que, não obstante, devastou a
Terra, a virou do avesso, espalhando por toda a parte ruínas e relíquias.
Espíritos inquietos, mas não aventureiros. Espíritos atormentados, incapazes de
viver no presente. Vergonhosos cobardes todos eles, incluindo eu. Há apenas uma
grande aventura. E essa é para o interior, rumo ao eu, e para essa não contam tempo nem espaço, nem
tão-pouco feitos. Diversas vezes, de tantos em tantos anos, estive na iminência
de fazer essa descoberta, mas, caracteristicamente, consegui sempre fugir aos
encartes. Quando tento encontrar uma boa desculpa para isso, só consigo pensar
no ambiente, nas ruas que conhecia e nas pessoas que as habitavam. Não sou
capaz de me lembrar de nenhuma rua da América, nem de nenhuma pessoa moradora
em tal rua, que pudesse conduzir alguém à descoberta do eu. Percorri as ruas de
muitos países do mundo, mas em lado algum me senti tão degradado e humilhado
como na América. Penso em todas as ruas da América reunidas e formando uma
imensa cloaca, uma cloaca do espírito para a qual tudo é aspirado e levado na
enxurrada para a mer… eterna. Sobre essa cloaca o espírito do trabalho agita
uma vara mágica; irrompem lado a lado palácios e fábricas, fábricas de munições
e de produtos químicos, siderurgias e sanatórios, prisões e manicómios. Todo o
continente é um pesadelo que causa a maior miséria ao maior número. Fui um deles,
uma entidade isolada no meio da maior congregação de riqueza e de felicidade
(riqueza estatística e felicidade estatística), mas nunca conheci nenhum homem
que fosse verdadeiramente rico ou verdadeiramente feliz. Eu, pelo menos, sabia
que era infeliz e pobre, que estava fora do ritmo e da linha. Era essa a minha
única consolação, a minha única alegria. Mas não chegava. Teria sido melhor
para a minha paz de espírito, para a minha alma, se tivesse manifestado a minha
rebelião abertamente, se tivesse ido para a cadeia por causa dela e se lá
tivesse apodrecido e morrido. Teria sido melhor se, como o louco Czolgosz,
tivesse abatido a tiro algum born presidente McKinley, alguma alma
insignificante e bondosa como ele que nunca fizera o mínimo mal a ninguém. Sim,
porque no fundo do meu coração havia assassínio: queria ver a América
destruída, arrasada de alto a baixo. Queria ver isso acontecer por pura
vingança, para castigo dos crimes cometidos contra mim e contra outros como eu,
que nunca foram capazes de erguer a voz e exprimir o seu ódio, a sua rebelião, a
sua legítima sede de sangue.
Era o produto maldito de um solo
maldito. Se o eu não
fosse imperceptível, o eu acerca do qual escrevo há muito teria sido destruído.
A alguns isto poderá parecer uma invenção, mas seja o que for que eu imagine
tenha acontecido, aconteceu realmente, pelo menos a mim. A história poderá negá-lo, uma vez
que não representei qualquer papel na história do meu povo, mas mesmo que tudo
quanto digo esteja errado e imbuído de preconceitos, de despeito e de malevolência,
mesmo que eu seja um mentiroso e um envenenador, mesmo assim é a verdade e terá
de ser engolida». In Henry Miller, Trópico de Capricórnio, 1939, Editorial Presença,
colecção Obras Literárias Escolhidas, 2009, ISBN 978-972-234-097-7
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