«(…) Mas o esquisito era que a
moça não se mexia. Também não estava usando nenhuma roupa, e por um momento ele
ficou envergonhado por estar parado ali, olhando uma moça nua. O vermelho que
tinha visto não era um pedaço de pano, mas uma bolsa que estava perto dela, e
ele não via as roupas em lugar algum. Engraçado, ela ficar deitada ali, nua.
Sobretudo quando fazia tanto frio. Então, uma ideia impossível lhe ocorreu. E
se a moça estivesse morta? Ele não conseguia encontrar outra explicação para
ela estar ali deitada tão quieta. A ideia o fez descer da rocha num pulo, e
retroceder devagar em direcção à entrada da fenda. Depois de afastar-se alguns
metros da moça morta, ele se virou e correu para casa o mais rápido que pôde.
Já não se importava se iria levar uma tareia ou não.
O suor fazia com que o lençol se
colasse ao seu corpo. Erica se virava e se mexia na cama, mas era impossível
encontrar uma posição confortável. A noite clara de verão não facilitava em
nada o sono, e pela milésima vez ela fez uma anotação mental para comprar
cortinas de blackout e colocá-las na janela, ou melhor, convencer Patrik a
fazer isso. Ela achava encantador o facto de ele conseguir dormir tão
satisfeito ao lado dela. Como ele ousava ficar ali roncando quando ela passava
acordada noite após noite? Cutucou-o de leve, na esperança de que acordasse.
Ele nem se mexeu. Ela cutucou com mais força. Ele resmungou, puxou mais as
cobertas e virou-se para o outro lado. Ela suspirou, ficou deitada de costas,
com os braços cruzados sobre os seios, olhando o tecto. A barriga arqueava-se
no ar como um grande balão, e ela tentou imaginar o bebé nadando no escuro,
dentro dela. Talvez tivesse o polegar na boca. Ainda era irreal demais para
conseguir visualizar aquilo. Estava no oitavo mês, mas ainda não conseguia compreender
o facto de que tinha outra vida dentro de si. Bom, muito em breve tudo seria bem
real. Erica estava dividida entre a ansiedade e o receio. Era difícil imaginar
como seria depois do parto. Para ser sincera, nesse momento era difícil pensar
para além do problema de não mais conseguir dormir de barriga para baixo. Ela
olhou o mostrador luminoso do despertador: 4h42 da madrugada. Talvez devesse
acender a luz e ler um pouco. Três horas e meia e um romance policial ruim
depois, ela estava prestes a rolar para fora da cama quando o telefone soou
estridente. Como sempre, ela passou o fone para Patrik. Alô, aqui fala Patrik,
a voz pastosa de sono. Não, está tudo bem. Ah, droga, claro, posso estar aí em
quinze minutos. Vejo você lá. Ele voltou-se para Erica. Temos uma emergência.
Tenho de me apressar.
Mas você está de férias. Ninguém
mais pode fazer isso? Ela percebia que estava choramingando, mas ficar acordada
a noite toda não fizera muito bem ao seu humor. É um assassinato. Mellberg quer
que eu o acompanhe. Ele mesmo está indo até lá. Um assassinato? Onde? Aqui em
Fjällbacka. Um garotinho encontrou o corpo de uma mulher na Passagem do Rei, esta
manhã. Patrik vestiu-se depressa. Não demorou muito, já estavam em meados de Julho
e ele só precisaria de roupas leves de Verão. Antes de sair correndo, foi até à
cama e beijou a barriga de Erica, mais ou menos onde ela se lembrava vagamente
de haver existido um umbigo. Vejo você mais tarde, nené. Seja bonzinho com a
mãe, e voltarei logo para casa. Ele a beijou apressado e saiu. Com um suspiro,
Erica içou-se para fora da cama e colocou um daqueles vestidos modelo tenda que
por ora eram as únicas coisas que lhe serviam. A contragosto, ela lia montes de
livros sobre bebés, e, em sua opinião, todos que haviam escrito sobre a
gloriosa experiência da gravidez deviam ser levados para a praça pública e ser
açoitados. Insónia, dores nas juntas, estrias, hemorroidas, suores nocturnos e
uma revolução hormonal generalizada. Isso estava bem mais perto da realidade. E
ela tinha a certeza de não estar irradiando nenhum brilho interior. Resmungando
para si mesma, Erica desceu as escadas devagar, rumo ao primeiro café do dia.
Talvez aquilo dissipasse um pouco o nevoeiro». In Camila Läkberg, Gritos do
Passado, 2004, Edições Dom Quixote, 2010/2011, ISBN 978-972-204-348-9».
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