Cortesia
de wikipedia e jdact
«(…) Quando Patrik chegou, a actividade
já era frenética. A entrada da Passagem do Rei havia sido fechada com um cordão
de isolamento, e ele contou três carros de polícia e uma ambulância. Os peritos
criminais vindos de Uddevalla estavam atarefados, e ele sabia que não devia ir
entrando directo na cena do crime. Esse era um erro de polícia novato, o que
não impedia seu chefe, o delegado Mellberg, de ficar andando de um lado para
outro da área. Os peritos olhavam desalentados para os sapatos e as roupas
dele, que naquele momento acrescentavam milhares de fibras e partículas ao seu
delicado local de trabalho. Enquanto Patrik se manteve do lado de fora da fita
amarela, Mellberg passou por cima dela e saiu da área, para grande alívio da
equipa. Olá, Hedström, saudou o delegado. Sua voz estava calorosa, quase
efusiva, e Patrik ficou surpreso. Por um instante, achou que Mellberg fosse lhe
dar um abraço, mas felizmente isso não aconteceu. Apesar disso, o chefe
parecia-lhe totalmente mudado. Fazia apenas uma semana que Patrik saíra de férias,
mas o homem diante de si não era o mesmo que ele deixara sentado cabisbaixo à sua
mesa, resmungando que o mero conceito de férias deveria ser abolido. Mellberg
apertou a mão de Patrik com entusiasmo e deu-lhe uma chapadinha nas costas. E aí,
como está a galinha choca em casa? Algum sinal de que vai ser pai logo? Não
pelo próximo mês e meio, dizem eles. Patrik ainda não fazia ideia do porquê de
tanto bom humor da parte de Mellberg, mas pôs de lado a surpresa e tentou concentrar-se
no motivo de ter sido chamado ao local. E então, o que descobriu? Mellberg fez
um esforço para apagar o sorriso da face e apontou para o interior sombrio da
fenda. Um garoto de seis anos saiu escondido de casa hoje de manhã enquanto os
pais dormiam e veio para cá brincar de cavaleiro entre as rochas. Em vez disso,
ele encontrou uma mulher morta. Recebemos o chamado às 6h15.
Quanto tempo, os peritos tiveram
para examinar a cena do crime? Eles chegaram faz uma hora. A ambulância chegou
primeiro, e os paramédicos atestaram de imediato que não seria necessário
nenhuma ajuda médica. Desde então, os peritos puderam trabalhar à vontade. Eles
são um pouco sensíveis… Eu só queria entrar e dar uma olhada, e a reacção deles
foi bem grosseira, se quer saber. Bom, acho que passar o dia inteiro
rastejando, procurando fibras com uma pinça, deixa qualquer um meio puto da vida.
Agora, Patrik reconhecia o chefe. Esse era mais o tom de Mellberg. Mas Patrik
sabia por experiência que não adiantava tentar mudar as opiniões dele. Era mais
fácil deixar que seus comentários entrassem por um ouvido e saíssem pelo outro.
O que sabemos sobre ela? Nada ainda. Achamos que tem por volta de vinte e
cinco. A única peça de roupa que encontramos, se é que dá para considerar
assim, foi uma bolsa. Fora isso, ela está nua em pelo. Belos peitos, aliás. Patrik
fechou os olhos e repetiu para si mesmo, como um mantra mental: não falta muito
para ele se aposentar, não falta muito para ele se aposentar… Mellberg
prosseguiu desatento. A causa da morte não foi confirmada, mas ela foi
espancada com violência. Contusões por todo o corpo e vários ferimentos que
parecem facadas. E ainda há o facto de que ela está deitada sobre um cobertor
cinza. O médico legista a está examinando agora, e esperamos um relatório
preliminar para logo mais. Alguém mais ou menos dessa idade foi dado como
desaparecido recentemente? Não, nem de perto. Um homem de idade foi dado como
desaparecido faz mais ou menos uma semana, mas no fim ele só se tinha cansado
de viver enjaulado com a mulher num trailer e fugiu com uma garota que conheceu
no Galären Pub. Patrik viu que a equipa que rodeava o corpo se preparava agora
para colocá-lo com cuidado dentro de um saco para cadáveres. As mãos e os pés
haviam sido ensacados de acordo com as normas para preservar qualquer evidência.
Os peritos criminais de Uddevalla
coordenaram os seus movimentos para colocar a mulher no saco da forma mais
eficiente possível. Então o cobertor sobre o qual ela estivera também foi
colocado num saco plástico para exame posterior. A expressão de choque nas suas
faces e o modo como ficaram paralisados revelaram a Patrik, de imediato, que
algo inesperado acontecera. O que foi?, perguntou ele. Não vão acreditar nisso,
respondeu um dos polícias, mas encontramos ossos aqui. E dois crânios. Pela
quantidade de ossos, eu diria que são suficientes para dois esqueletos.
Verão
de 1979
Ela
oscilava de um lado para outro enquanto pedalava de volta para casa, numa
luminosa noite de Verão. A festa fora um pouco mais maluca do que ela
imaginara, mas isso não tinha importância. Ela era adulta, afinal de contas, e
podia fazer o que bem entendesse. O melhor tinha sido poder ficar longe da
menina por algum tempo. O bebé, com toda a sua gritaria, sua necessidade de
carinho e sua demanda por algo que ela não lhe poderia dar. Era por causa do
bebé, enfim, que ela ainda tinha de morar com a mãe, aquela velha que mal a
deixava afastar-se de casa alguns metros, embora ela já tivesse 19 anos. Havia
sido um milagre a mãe ter permitido que saísse essa noite para comemorar o
solstício de Verão. Se não fosse pela criança, ela agora já estaria morando
sozinha; poderia tentar ganhar o seu próprio dinheiro. Poderia sair sozinha
quando quisesse e voltar quando lhe desse na telha, e ninguém iria dizer nada.
Mas com a menina era impossível. Ela preferia entregar a criança para a adopção,
mas a velha não queria nem ouvir falar disso, e agora era ela quem pagava o preço.
Se sua mãe queria a menina tanto assim, por que não cuidava dela sozinha? A
velha ia ficar furiosa de verdade quando ela chegasse cambaleando daquele jeito
no meio da madrugada. Seu hálito cheirava a álcool, e com certeza mais tarde
teria que pagar por isso. Mas valera a pena. Ela não se divertia assim desde o
nascimento da pestinha.
Passou recto pelo cruzamento onde
ficava o posto de gasolina e seguiu mais um pouco pela estrada. Então virou à
esquerda, na direçcão de Bräcke, mas perdeu o equilíbrio e quase caiu na vala
ao lado da estrada. Endireitou-se e pedalou com mais força, conseguindo algum
impulso para subir a primeira ladeira. O vento soprava no seu cabelo, e a noite
clara de verão fora dominada por um silêncio completo. Por um instante, ela
fechou os olhos e pensou naquela noite luminosa de verão em que o alemão a
engravidou. Tinha sido uma noite maravilhosa e proibida, mas não valeu o preço
que ela teve que pagar ao final. De repente, ela abriu os olhos quando a
bicicleta chocou contra algo. A última coisa de que se lembrava era o chão
vindo na sua direcção a grande velocidade». In Camila Läkberg, Gritos do
Passado, 2004, Edições Dom Quixote, 2010/2011, ISBN 978-972-204-348-9».
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