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Tui, Março de 1120
«(…) Embora o irmão lhe
transmitisse muita confiança, a alma de Elvira não acalmaria enquanto o cerco não
fosse levantado. Temia pela vida do marido, tinha-lhe respeito e sabia-o um pai
dedicado, a quem as filhas amavam. Infelizmente para ela, na madrugada seguinte
os galegos de Gelmires e os leoneses e castelhanos de Urraca atravessaram o rio
em barcaças e surpreenderam os portucalenses, que retiraram em debandada,
perdendo muitas armas e cavalos. A meio da tarde, Tui rendeu-se e Fernão Peres Trava
regressou à tenda, na companhia do desconsolado Gomes Nunes Pombeiro. Perdi
Toronho!, lamentou-se este, abraçado às filhas. Dona Urraca vai levar-me preso
para Toledo!
Maria e Chamoa soluçaram, temendo
pela vida do pai. No entanto, Fernão Peres tranquilizou-as, dizendo que, por
agora, iriam apenas acompanhar a invasão do Condado Portucalense. Vamos até
Lanhoso, dona Teresa recuou para lá. Partiram no dia seguinte, e viajaram na rectaguarda
das tropas invasoras. À medida que avançavam, Fernão Peres revelou-lhes que os
violentos saques, praticados pelos leoneses e castelhanos de Urraca,
angustiavam o arcebispo de Compostela, que se sentia desconfortável como cúmplice
daquela pecadora devastação. Talvez por isso, quando finalmente se montou o
cerco ao castelo de Lanhoso, onde já estava sitiada dona Teresa, Fernão Peres
parecia estranhamente satisfeito, e despediu-se da irmã, do cunhado e das
sobrinhas com um misterioso sorriso.
Julgo que foi nesse dia que o
Trava fascinou pela primeira vez o arcebispo de Compostela com a história da
relíquia do conde Henrique. Gelmires era fanático por artefactos sagrados, já
nos roubara alguns de Braga, e cegou com a possibilidade de colocar as mãos
numa antiguidade vinda da Terra Santa. Prometendo-lhe a relíquia, o Trava
comprara o arcebispo! Por mais que me custe dizer isto, ao longo da vida dei
por mim a concluir que Fernão Peres e dona Teresa tinham um talento especial
para o ardil, a artimanha, o truque e a intriga. Embora eu fosse um homem de
luta em campo aberto, de espada e escudo, com o tempo notei que essas
habilidades políticas eram igualmente essenciais para fazer do meu melhor amigo
um grande rei. E julgo que ele também aprendeu muito com os estratagemas da mãe
e do amante, embora raramente o reconhecesse. O orgulho cega-nos muitas vezes.
Lanhoso,
Março de 1120
Num dia solarengo, que parecia anunciar
a iminente chegada da Primavera, um grupo formado por meu pai e meu tio; por
mim e pelos meus irmãos Afonso, Soeiro e minha prima bastarda Raimunda, aos
quais se juntava o príncipe Afonso Henriques, banhava-se nas antigas termas
romanas de Caldas das Taipas, perto de Guimarães, quando chegou a notícia de
que as tropas de dona Urraca haviam conquistado Tui e atravessado o rio Minho,
e que já desciam, velozes, para Lanhoso.
Meu pai e meu tio ordenaram um
apressado regresso a Guimarães, onde encontrámos um temeroso Paio Soares.
Sempre vaidoso, aperaltado na sua dalmática verde, o alferes exclamou,
esbaforido, que a rainha e o arcebispo estavam a caminho da cidade para a
saquear! Desde a ameaça com que dona Urraca o brindara em Astorga, no dia da
morte do conde Henrique, que Paio Soares a temia. Dizia-se que sofria de
tenebrosos pesadelos, pois achava que ela o queria eliminar, depois de lhe
extrair a informação sobre o paradeiro da relíquia. Esse receio confundia-o e a
sua informação revelou-se errada: dona Urraca mantinha-se em Lanhoso.
Aliás,
um mensageiro enviado secretamente por Fernão Peres Trava impunha aos
portucalenses que se dirigissem a essa povoação, onde dona Teresa se iria
defender dos invasores. A ordem era inequívoca, mas, temeroso, o antigo alferes
considerou-a imprudente. Somos muito menos do que os leoneses, castelhanos e
galegos, seremos dizimados facilmente, considerou Paio Soares. O senhor da Maia
batalhara contra os mouros em Coimbra, Santarém e Sintra, e tinha inegável
experiência de combate. Além disso, conhecia bem o terreno à volta de Lanhoso,
rodeado de vales propícios a emboscadas. Assim, escondeu o seu profundo medo em
conselhos prudentes. Egas e Ermígio Moniz concordaram com ele, e decidiram
aguardar por novidades, mas logo Afonso Henriques, apesar dos seus onze anos,
se empertigou e protestou contra aquela timidez portucalense. Minha mãe será
cercada, não a podemos deixar sozinha!» In Domingos Amaral, Assim Nasceu Portugal, Por
Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia
de CdasLetras/LeYa/JDACT