«(…) Não lhe direi nada. Paciência, suspirou o encapuzado. Quer saber de uma coisa? A dose de veneno que lhe dei não seria mortal para um homem saudável, mas você está decrépito. Será talvez questão de minutos... Ao que parece, já tem dificuldade para respirar. O magister cambaleou, mas fez um esforço e se apoiou a uma parede. Foi então que, num último lampejo de lucidez, viu algo cintilar no pescoço do homem da capa: um pingente dourado com a forma de um insecto de oito patas. O símbolo de Airagne!, exclamou aterrorizado. Aquele lugar maldito... Sim, o castelo de Airagne, confirmou a sombra em tom ameaçador. Airagne, a morada do conde de Nigredo... Pois bem, mas agora você..., sabe muitas coisas, ou melhor, coisas demais. O encapuzado se aproximou. O velho, agora tomado pelo delírio, não viu uma figura humana avançar ao seu encontro, mas oito patas compridas e finas, providas de olhos bulbosos, que luziam na treva. Airagne!, tentou gritar, lutando contra a sensação de asfixia que lhe apertava a garganta. Sentiu junto de si aquela criatura monstruosa quando o terror o invadiu e seu coração parou de bater.
O Castelo de Airagne
O cardeal
Romano Frangipane franziu a testa numa expressão de dúvida e repôs a carta no
estojo de onde a tirara, junto a outras ainda não lidas. Quem poderia ter
escrito coisas tão delirantes? Certamente uma freira enlouquecida no claustro
ou talvez uma beata. A vibração na pálpebra esquerda prenunciou a chegada de
uma dor de cabeça. O prelado suspirou, resignando-se a acolher o incómodo, consequência
inevitável de suas mudanças de humor. Embora ele sofresse daquelas crises desde
a juventude, elas haviam-se agravado ultimamente, obrigando-o a refugiar-se no
escuro e no silêncio completo. No entanto, disse para si mesmo, o agravamento
dos distúrbios nervosos era normal em certas situações, sobretudo na prisão.
Fazia semanas que definhava naquela torre, ou talvez meses. As janelas se abriam
para um céu cinzento, coberto de névoa e fumaça negra, que não permitiam
acompanhar a sucessão dos dias e das noites. Era já um milagre poder conservar
a lucidez e o raciocínio.
Um ressoar de passos leves
antecipou a entrada de uma dama de cabelos ruivos presos num coque. Frangipane
saudou-a obsequiosamente e empertigou o copo maciço, cruzando sobre o ventre os
dedos que exibiam seis anéis de ouro. Vossa majestade parece preocupada,
observou o prelado. E como poderia não estar, eminência? O cardeal sentiu uma
pontada na têmpora esquerda, seguida de pulsações que se ramificavam pela
testa. Não desanime, minha senhora. Tu és Branca de Castela, rainha da França.
Virão logo socorrê-la. A dama lançou-lhe um olhar de censura. Cardeal de Sant’Angelo,
por favor, poupe-me dessa conversa enfadonha. Diante dessas palavras, a dor de
cabeça do cardeal se intensificou, despertando em Frangipane a vontade de pegar
aquela mulher pelo pescoço e estrangulá-la. Foi um impulso violento, como
violenta era a aversão que nutria por ela, por seu ar de sensualidade e
soberba. Não por acaso, na corte, chamavam-na de Dame Hersent, a loba do fabliau da raposa Renard.
E ele a via assim naquele momento, uma mulher insolente e lasciva. Tomado por
essa onda de emoções, o cardeal chegou a pensar em esbofetear a Dame Hersent
como se ela fosse uma meretriz de quatro tostões, mas, contendo-se, cerrou as
mandíbulas e esboçou um sorriso paternal.
Vossa majestade deve ter paciência
e ser forte. Em breve, seu exército assediará este castelo e o conde de Nigredo
será obrigado a libertá-la. Não é tão simples assim. Branca caminhou até ao
prelado balançando os quadris sob o vestido azul. Ela ainda não completara 40
anos e, embora houvesse acabado de dar à luz o seu undécimo filho, parecia
fresca como uma rosa. Finge não entender? Nosso exército se dividiu e vaga perdido
pelo Languedoque. Seu comandante, Humbert de Beaujeu, foi encarcerado connosco
nesta torre. O cardeal de Sant’Angelo teve de concordar, incapaz de desviar os
olhos daquela mulher. A dor de cabeça lhe provocava uma leve vertigem, que acalmava
a ira sentida pouco antes. Tinha agora outras fantasias. Imaginava
percorrer-lhe o pescoço com toques suaves e depois ir descendo, sob o
vestido... Comprimiu os lóbulos frontais com o indicador e o polegar, como para
impedir que a sua cabeça se partisse ao meio. Porque o atormentavam desejos que
jamais concretizara? Se ao menos pudesse mergulhar o rosto em água gelada!
Combateu aqueles impulsos doentios e esforçou-se para falar com firmeza: outro
logo substituirá Humbert de Beaujeu, nosso lieutenant, e retomará as rédeas das milícias. Tomara que esteja
certo, disse Branca, que não parecia notar o conflito interior do cardeal. Mas
diga-me, nenhuma notícia do nosso carcereiro?» In Marcello Simoni, A
Biblioteca Perdida do Alquimista, 2012, tradução de Maria Irene Carvalho, Clube
do Autor, Lisboa, 2013, ISBN 978-989-724-089-8.
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