«O príncipe das trevas é um cavalheiro». In Shakespeare
Viagem de Volta
«(…) Ele já estava na sacola quando a apanhei na hora de partir. Estava com muita pressa. Ele revirou a caixa, balançou-a e depois tornou a colocá-la na sacola, de onde tirou a câmara fotográfica. Cotten sentiu o corpo ser atravessado por uma torrente de alívio de cima a baixo.
Nikon, comentou o militar, examinando câmara. Muito bonita. Sim, é mesmo, concordou ela impaciente. Posso ir agora? Depende. Depende do quê? Do que acontecer com esta câmara. É um equipamento de setecentos... Muito, muito bonita, interrompeu o militar, acariciando a máquina. Cotten estendeu a mão para a câmara, mas ele a puxou com violência. Está ansiosa para voltar para o seu país, não é?, indagou, tirando a protecção da lente. Olhou pelo visor. Já detive diversos americanos para interrogatório. Essa é a nossa política. Ele mirou para o lado esquerdo e depois parou. Será que vou precisar detê-la? Cotten suspirou com relutância. Não. Ele girou a Nikon nas mãos, admirando-a, depois passou a correia pelo pescoço. Cotten olhou para a câmara, queria arrancá-la do pescoço dele, mas concluiu que, naquelas circunstâncias, não tinha outra escolha a não ser sacrificá-la. Ruídos de disparos partiram da direcção do posto de fiscalização da fronteira. Malditos idiotas, resmungou o oficial, devolvendo-lhe apressado o passaporte e a identidade de imprensa. Volte para o seu país, americana. Virando-se, encaminhou-se para o local dos distúrbios..., com a Nikon balançando-se ao pescoço. Cotten fechou o zíper da sacola, enfiou os documentos no bolso do casaco e saiu andando. Atrás dos veículos militares avistava-se um mar de automóveis, caminhões, caminhonetes e autocarros alinhados nos dois lados da estrada. As pessoas erguiam-se nos estribos e nos tectos dos carros, procurando desesperadamente pelos parentes entre os imigrantes que passavam aos borbotões. Cotten seguiu ao longo da estrada, em busca de um táxi ou de um autocarro de linha.
De repente, ouviu uma buzina forte à direita. Um homem acenava vivamente para ela de uma janela. Era o turco da equipa de escavação. Estamos indo para Ankara, dona, gritou para ela. Corra! Acho que adoro esse homem, pensou Cotten, disparando em direcção ao autocarro. Procurou no fundo da sacola e encontrou o dinheiro de reserva para comprar a passagem com o motorista. Uma vez a bordo, abriu caminho pelo corredor apinhado e pousou a mão sobre o ombro do amigo recém-conquistado, agradecendo-lhe ainda mais quando ele lhe cedeu um pouco de espaço para se sentar. Segurando a sacola firmemente contra o corpo, ela se esgueirou para o vão estreito na última fileira de assentos, imaginando o que estaria contrabandeando para fora do Iraque. Ansiava por ficar a sós com a caixa de Archer e examiná-la. Num instante o autocarro deu a partida e sacudiu, rumando para a estrada. Cotten olhou rapidamente pela janela de trás. A maré de refugiados aumentava como um dilúvio.
A longa viagem através da Turquia foi desconfortável. Com tantas pessoas espremidas dentro do autocarro, Cotten recebeu uma boa dose de todos os odores que o corpo humano é capaz de produzir. Uma vez ela ouvira que, dentre todos os animais, os humanos são os que têm o pior cheiro. Isso era para ser uma vantagem, repelindo os predadores. Agora estava certa de que a história era verdadeira. Durante a viagem, não só os odores opressivos, também os constantes solavancos a impediram de dormir. Quando finalmente chegaram a Ankara, ela estava faminta e sentia-se mais horrível do que jamais havia se sentido em toda a vida. Depois de usar o cartão de crédito para pagar ao turco e os companheiros uma refeição num barzinho próximo ao terminal de autocarros, Cotten despediu-se com um firme aperto de mãos antes de tomar um táxi para o Aeroporto Esenboga. Lá, comprou a passagem de volta, com uma conexão no Aeroporto Heathrow, em Londres, antes de chegar ao Aeroporto John F. Kennedy, em Nova York.
Por
mais que preferisse manter a sacola consigo, preferiu despachá-la entre as
bagagens para não ter de explicar sobre a caixa de madeira aos turcos no balcão
de inspecção de bagagem. A sacola teria mais chances de seguir em segurança e
sem incidentes se não a levasse na mão. Tudo o que podia fazer era rezar para
que a caixa de Archer não contivesse explosivos nem outros materiais que
pudessem disparar algum tipo de alarme. Cotten lavou-se no banheiro feminino do
aeroporto mas ainda sentiu-se mal quando, depois de embarcar e sentar-se ao
lado de uma jovem com um pulôver azul e calças de vinco, esta fez questão de ir
sentar-se bem longe dela. O dourado arroxeado do crepúsculo estendia-se no
horizonte quando ela se enrolou no cobertor da companhia aérea. Imaginando qual
seria o segredo que jazia dentro da sacola armazenada no compartimento de carga
do avião, ela abaixou a persiana da janela, fechou os olhos e mergulhou em um
sono inquieto. Ao pousar na Inglaterra, Cotten recuperou a sacola do carrossel
de bagagens e apalpou-a rapidamente, para se assegurar de que a caixa
continuava em segurança dentro dela. Uma fila de passageiros se encaminhava
para a Imigração britânica. Cotten enterrou as unhas na palma da mão, agarrando
com força a alça da sacola. Felizmente, o funcionário não percebeu o seu
nervosismo quando carimbou o passaporte. Ela passou para a Alfândega. Tem
alguma coisa a declarar?, indagou o agente quando depositou a sacola sobre a
mesa. Não. O estômago se contraiu em um nó enquanto o homem examinou-lhe a
face. Depois de uma pausa, ele acrescentou: bem-vinda ao Reino Unido, senhorita
Stone, e indicou-lhe a saída. Cotten tentou engolir, mas a boca estava seca.
Ela sorriu para o homem, pegou a sacola e saiu. Talvez pudesse sair carregando
a sacola no voo para Nova York em vez de despachá-la. Não queria perdê-la de
vista. O pior já tinha passado, sem grandes problemas com a segurança, depois
da primeira etapa de volta para casa. Casa.
Deus, seria bom estar em casa outra vez, pensou, passando pelo
terminal de embarque e encaminhando-se para dentro do 747. O dia estava nublado
e gotas de chuva enevoavam a janela quando o avião mergulhou entre as nuvens.
Ela ouviu o ruído característico do trem de pouso sendo recolhido. Mais sete
horas. Assim que a luz indicadora de apertar os cintos apagou-se, Cotten pegou
a sacola do bagageiro superior, levou-a para um dos toyletes de bordo no fundo
do 747 e fechou a porta. Sentou-se no vaso e abriu a sacola. Pondo os videotapes
de lado, tirou a caixa de dentro. Pelo que podia perceber, ela era feita de
madeira; era de uma cor enegrecida, gasta e envelhecida, com alguns arranhões
recentes. Tentou abri-la mas não encontrou a tampa. Estranho, pensou, não
parecia haver uma parte inferior ou superior, nada de dobradiças nem
fechaduras. Mas Archer a abriu e examinou o conteúdo. Lembrou-se da intensidade
com que ele a admirou. Balançou a caixa, mas ela não fez nenhum ruído. Como ele
conseguiu abrir algo que era praticamente um bloco de madeira maciça? O que
havia de tão importante nessa caixa para ele insistir para que ficasse com ela?
Porque o árabe tentou matá-lo por causa dela? Mas a coisa que mais a
impressionou foram as palavras de Archer. Geh el crip. Finalmente, guardou a caixa, voltou ao
assento e acomodou a sacola no compartimento de bagagem». In Lynn Sholes e Joe Moore, A
Conspiração do Graal, 2005, Clube do Autor, 2020, ISBN 978-989-724-534-3.
Cortesia de CdoAutor/JDACT
JDACT, Lynn Sholes, Joe Moore, Literatura, Mistério, Médio Oriente,