«O príncipe das trevas é um cavalheiro». In Shakespeare
Viagem de Volta
«(…) Chegando ao Aeroporto John F. Kennedy, Cotten passou rapidamente pela Alfândega e pela Imigração. Depois de atravessar o terminal lotado, parou numa caixa eletrónica para levantar dinheiro, e em seguida passou pelas portas automáticas para a calçada. O Inverno rigoroso de Nova York atingiu-a em cheio, gelando-lhe as faces. Naquela época do ano, o Nordeste do país não tinha atractivos suficientes que compensassem, pensou. Ainda bem que esteve fora por algum tempo, longe da neve e do doloroso fim de caso com Thornton Graham. Cotten acenou para um táxi e acomodou-se no assento de trás, a sacola pousada no colo. Indicou ao motorista o endereço do apartamento no centro da cidade e então repousou a cabeça no encosto. Lembrou-se dos sonhos inquietantes que a perturbaram durante o voo. Não conseguia tirá-los da memória, os sonhos eram impregnados com o cheiro húmido da câmara antiga, a explosão do disparo da arma de fogo, o sangue ainda quente daquele árabe, a pele descorada e os lábios azulados de Archer, o último suspiro dele no seu ouvido enquanto sussurrava: Geh el crip, você é a única pessoa. Era impossível que ele fosse capaz de pronunciar aquelas palavras. Impossível. E ainda assim ele as pronunciou. Através da janela empoeirada do táxi, Cotten observou o perfil da cidade, que até então estivera fora de foco, ficar mais nítido.
Mal entrou na sala do apartamento onde morava, Cotten deixou uma mensagem na secretária eletrónica de Ted Casselman, informando-o de que havia regressado em segurança. Ela havia ligado para ele de Ankara e também de Londres. Mas o chefe continuava insistindo em saber dela no momento em que chegasse em casa. Um tipo paternal, misto de mentor e amigo, ele estava aborrecido com ela por ter corrido tantos riscos e se preocupava enquanto não pisasse em solo americano. Revigorada, depois de um banho quente de meia hora, Cotten torceu as abas do saca-rolhas e abriu uma garrafa de vinho branco. Encheu a taça pela metade. Nada de vodka essa noite. O vinho sempre a ajudara a dormir melhor, e uma boa noite de sono era o que mais lhe fazia falta. A caixa de Archer descansava no centro da mesa da cozinha. Ela a examinou enquanto se sentava, embalando a taça de vinho na mão. Não se viam sinais exteriores na caixa, nem junções nem dobradiças. Se houvesse alguma fenda, seria visível na superfície de madeira. Cotten esfregou o pescoço. Os músculos doíam, mas o banho a ajudou a aliviar um pouco a tensão. A água quente estava deliciosa, massajando-lhe a nuca e as costas. Felizmente, o aroma adocicado do champo de coco a ajudou a eliminar os odores que pareciam ter-se acumulado no seu corpo e impregnado o nariz adentro. Cotten bebericou o vinho, então soltou a fivela da presilha, permitindo que o cabelo húmido caísse sobre o robe de banho de chenile. Depois de alguns minutos, ela se levantou e atravessou a sala. A pilha de correspondência acumulada jazia sobre a escrivaninha onde o seu senhorio a havia deixado. Coisas inúteis, não sei para que servem, murmurou, tentada a jogar tudo na lata de lixo. Ali dentro, parcialmente oculto sob alguns envelopes antigos, repousava um porta-retrato com a moldura prateada em torno da fotografia de Thornton Graham. Ela o havia jogado no lixo um dia antes de partir para o Iraque. O envolvimento com ele tinha sido um erro.
Cotten afastou os envelopes e descobriu o rosto. Thornton Graham era a nova âncora da SNN, visto em todo o país na hora do jantar. Bonito, confiante, experiente..., e casado. Quando ela recebeu a primeira missão na emissora, ele havia-lhe dedicado uma atenção especial. Sob o efeito do carisma dele, dos seus olhares atraentes e da admiração que lhe despertou, ela se viu totalmente dominada. Cotten lembrava-se da primeira vez que se havia encontrado com Thornton, havia sido no ano anterior, nas vésperas do Natal. Normalmente, ela seguia a pé para o trabalho, mas naquele dia tomou um táxi, porque levava o material de decoração natalina para o escritório. Para evitar mais do que uma viagem de táxi, carregava duas caixas, além da bolsa pendurada no ombro e ainda uma caixa de bombons que pretendia deixar num pote sobre a mesa de trabalho. Conseguiu entrar no prédio com a ajuda do porteiro e chegou até aos elevadores. Mas, ao entrar no elevador, tropeçou na porta o bastante para fazer com que a sacola escorregasse do ombro. Alguém atrás dela segurou a sacola e colocou-a de volta ao ombro. Ela se virou para agradecer, observando a mão que a ajudara, e deparou com o rosto do correspondente mais antigo da SNN, Thornton Granam. Conseguiu agradecer, claro, mas a voz se engasgou e saiu esganiçada. Thornton pareceu sensibilizado pelos encantos dela e desferiu-lhe o seu famoso sorriso. Cotten virou-se de lado, tentando parecer indiferente e não tão obviamente seduzida..., mas não pôde deixar de notar o reflexo dele nas portas de latão polido do elevador. Ao observá-lo, ficou embaraçada ao perceber que ele a examinava. A viagem de elevador pareceu durar uma eternidade. Quando ela saiu do elevador, ele fez o mesmo. Thornton ofereceu-se para levar as caixas e acompanhou-a até a sala dela. Antes de sair, convidou-a para acompanhá-lo no almoço mais tarde. Esse foi o começo daquela que se tornaria uma relação da mais pura paixão física, com quase um ano de duração. Agora estava tudo acabado..., superado e encerrado.
Cotten
esvaziou a taça e sentiu o corpo se aquecer pelo vinho. Os músculos do pescoço
tinham relaxado e ela experimentava uma leve tontura provocada pelo álcool.
Empurrou a pilha de cartas para dentro da lixeira, encobrindo a face de
Thornton, e voltou à cozinha caminhando devagar. Lançou um olhar para a caixa
de Archer e decidiu que, por precaução, precisava guardá-la num local seguro
enquanto não decidisse o que fazer com ela. Cotten lavou a taça vazia. Enquanto
a enxugava, inclinou a cabeça e olhou para o bule sobre o fogão. Tendo
uma ideia,
colocou o bule sobre o balcão, depois levantou a tampa do queimador do fogão
eléctrico.
Deu uma olhada rápida na caixa, então para o espaço sob a tampa do queimador.
Com cuidado, enfiou a caixa entre os elementos de aquecimento e depois fechou a
tampa do queimador até ouvir o clique indicando que havia travado na posição.
Um lugar tão bom quanto qualquer outro, pensou. Pôs de volta o bule sobre o
queimador, apagou as luzes e foi para a cama. Pela primeira vez em anos, sonhou
que era criança outra vez, brincando no sítio da família. Não obstante, principalmente,
sonhou com a irmã gêmea».
In Lynn Sholes e
Joe Moore, A Conspiração do Graal, 2005, Clube do Autor, 2020, ISBN
978-989-724-534-3.
Cortesia de CdoAutor/JDACT
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