Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Sarah e o clérigo não
trocaram uma palavra. Ela preferia assim e era um favor que fazia à sua escolta
a quem o silêncio também agradava. Cumpria as ordens escrupulosamente e não
desejava ser interrogado sobre coisas que não devia, ou não podia, mencionar.
Saíram para o exterior. Estava frio, mas não desagradável. Tolerava-se. Pensava
em Rafael. Seria ele quem a convocara? Não podia ser mais ninguém. Por essa
razão estava tão despreocupada. Não era suficientemente importante para
despertar o interesse de jovens clérigos mudos. O carro estava em frente ao
hotel, ao fundo das escadas. Um Mercedes de vidros fumados. O jovem padre abriu
a porta do veículo e Sarah olhou para o interior. O queixo caiu-lhe. Dentro,
confortavelmente sentado, a saborear um charuto, um homem de vestes escarlates,
cruz de ouro a pender no peito, segurava no colo a calota cardinalícia. Boa
noite, Sarah Monteiro, cumprimentou.
As conversas entre amigos são contínuas. Ainda que fiquem anos apartados retomam-nas sempre no ponto em que ficaram, empenhando a experiência adquirida no entretanto. As grandes amizades não carecem de comunicação constante e ininterrupta, podem mesmo não dizer nada um ao outro entre encontros que quando se tornam a ver a sensação é a de que se tinham visto no dia anterior. O dia anterior em certas amizades podia ter sido há três anos e meio. Hans Schmidt e Tarcísio fruíam desse género de amizade. Um abraço apertado seguiu-se ao cumprimento entre as mãos direitas. Depois dois beijos. Tarcísio deixou os olhos encherem-se de lágrimas, mas nenhuma se atreveu a descer pelo rosto. Schmidt não chegou a tanto, mas isso não queria dizer que não tivesse saudades do amigo, simplesmente mostrava menos. Daí que sempre tenha sido chamado de Austrian Eis. Como estás, meu querido?, perguntou Tarcísio com um sorriso. Como Deus quer, respondeu o austríaco fitando o piemontês. Senta-te, senta-te, pediu Tarcísio, apontando para um sofá de couro castanho com décadas. Deves estar cansado. Fizeste boa viagem? Muito agradável, disse Schmidt, acatando a oferta de Tarcísio e deixando o corpo repousar no sofá. Cruzou a perna. Sem atrasos, sem percalços.
Tarcísio
sentou-se ao seu lado. Estavam no seu gabinete, o que para Schmidt era uma
novidade, nunca ali havia entrado. Muito espaçoso, uma grande secretária de
carvalho junto a uma das amplas janelas que estavam fechadas a separá-los da
noite romana. O silêncio instalou-se constrangedor. Os cartuchos da conversa
circunstancial estavam quase esgotados. Jantaste? Queres comer alguma coisa?,
ofereceu Tarcísio. Estou bem, Tarcísio, obrigado. Schmidt sempre fora muito frívolo.
Raramente sentia fome, por vezes, nos tempos em que estava colocado em Roma,
parecia-lhe há séculos, esquecia-se de comer. Chegou a desmaiar de fraqueza por
causa disso. O austríaco era obstinado e dedicava-se com afinco à tarefa ou
tarefas que lhe tivessem sido imputadas, fosse nos estudos ou, posteriormente,
nas funções pastorais. Durante alguns anos esteve arredado dessas funções que
lhe davam tanto prazer, auxiliando Tarcísio com deveres mais administrativos e
episcopais que entendia serem necessários, mas não o preenchiam. Fosse como
fosse, gostasse ou não, sempre as executou com muita proficiência. Tarcísio
tinha um enorme apreço pelo homem e pelo clérigo e, um ainda maior, pelo amigo.
Vamos falar do teu problema?, inquiriu Schmidt. A sua abordagem aos problemas
era simples e directa, não os evitava, nem lhes virava as costas, se existiam
tinham de ser solucionados imediatamente para não avassalarem sobre nós mais
tarde. Deus protegia os audazes». In Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada,
Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, Luís Miguel Rocha, Roma, Conhecimentos, Literatura, Actualidade,