A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) Sentia-me tão tocado com tal mercê, com a generosidade de
meu mestre, que a minha garganta parecia queimar como que em ânsias
desesperadas. As lágrimas embaciavam-me a sala. Tive de engolir por diversas
vezes antes de poder sussurrar: mas nunca havemos de nos separar. Hei-de
sempre... Mais tarde ou mais cedo, os mais novos têm de se separar dos mais
velhos, disse meu tio. Hás-de seguir o teu caminho e hás-de depois voltar. Mas
não há-de haver nenhum demónio capaz de me travar se estiveres em perigo!,
retirou a mão da minha cabeça e acariciou-me no rosto. Agora vá, temos de
trabalhar. Mas não há nada que eu possa...? Estendeu a mão e apontou para o meu
manuscrito: ai do mestre de Cabala que responda a todas as perguntas do seu
aprendiz! Toca a trabalhar! Momentos depois, quando avivava as patas de um
cãozito na minha iluminura com pequenos toques de tinta negra, um berro como vidro
a partir-se cortou o ar. Corre!, - gritou meu mestre. Subi a escadas de
um pulo. A cozinha estava vazia. De fora, vozes alteradas ressoavam contra os
muros. Saltei do meu quarto para a loja, precipitei-me para a Rua da Sinagoga.
Enquanto guardava o meu kipá, avistei tia Ester ajoelhada junto ao nosso amigo
Diego, que gemia. De um corte no seu queixo barbudo o sangue corria para as
mãos de minha tia.
O impressor Diego foi o primeiro a contribuir para o rio de sangue que durante os dias que se seguiram haveria de nos conduzir à paisagem de um deserto apenas rodeado de mágoa. Mas por enquanto essa geografia de morte era ainda um segredo para nós. Pela sua fronte corriam torrentes de suor e as faces estavam sujas das marcas da eterna poeira da cidade. O sangue do corte no queixo fluía pelo pescoço. Por entre ataques de tosse, procurava recuperar o fólego. Andava a passear por aqui..., só um passeio, disse ele em português. Parei perto do rio, no Chafariz dEl-Rei a lavar as mãos. Tia Ester desapertou-lhe a gola do gibão enodoado e limpou-lhe o peito com um farrapo que rasgou da sua blusa. Reparei no traço escuro de uma cicatriz antiga que tinha no peito, por baixo da clavícula, que parecia ter sido escavada por algum bicho. Em torno a nós, começaram a juntar-se vizinhos, a bisbilhotar entre si. Dois rapazes..., continuou Diego. Começaram aos berros que eu estava a envenenar o poço com essência de peste. Desataram a correr atrás de mim. Caí. Atiraram-me pedras. Apanhem o rabino de rabicho! Apanhem o rabino... Quem me salvou foi um homem moreno com um gorro azul. Era alto, forte... No seu desespero, as últimas palavras procuravam o socorro do hebraico. Fala português, murmurei-lhe, enquanto o deitávamos no empedrado da rua. O turbante de Diego tombou e reparei então pela primeira vez, por entre os tufos de cabelo que lhe cobriam as orelhas e que começava a rarear e a ficar grisalho, os sinais que cobriam a sua cabeça. Tinha-lhe caído um papel dobrado. Pensando que podia ser alguma mensagem ou alguma fórmula de orações que o poderiam incriminar como judeu praticante, apanhei-o e enfiei-o na grande bolsa que sempre trazia pendurada ao pescoço e me servia como uma espécie de bornal, judas encostava-se a mim, gelado de medo, e tive de o sacudir para que fosse chamar o doutor Montesinhos. Meu tio reuniu-se a nós e, depois de uma breve oração, disse: vou lá dentro ver se posso arranjar algum remédio.
Ainda
tentei manter fechado o lanho, com os dedos apertados em torno da ligadura
improvisada de minha tia, mas o tecido depressa ficou tinto de sangue. Tia
Ester foi a correr buscar água limpa, enquanto eu rasgava tiras da minha camisa
para substituir as ligaduras. Meu tio chegou com Farid. Traziam extractos de
consolda, bagas de loureiro, gerânio, goma e argila, goma arábica e água
sulfurosa. Mas apesar de todas estas substâncias adstringentes, o sangue não
coagulava. É esta maldita barba!, resmungou meu tio - Não consigo chegar à
ferida. O doutor Montesinhos vai ter de te cortar a barba, disse ele para o ferido.
Diego, que pertencia à casta sacerdotal de Levi, ao ouvir isto, deu-nos um
empurrão: não o permitirei!, gritou em hebraico. Tenho de ter barba. É proibido...
Há levitas sem barba, observei, mas Diego limitou-se a gemer. Dirigindo-me a
meu tio, sussurrei: um ataque em pleno dia. É mau sinal. Mais umas semanas de
seca e... Como podes ter a certeza que não foi planeado?, disse meu tio num tom
irado. Ia a perguntar o que queria dizer, mas uma sombra projectando-se sobre nós
suspendeu as minhas palavras. Dois homens a cavalo conduzindo uma carruagem
branca e dourada fitavam-nos do alto». In Richard Zimler, O Último Cabalista de
Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimento,