sábado, 12 de setembro de 2020

Richard Zimler. O Último Cabalista de Lisboa. «Como única resposta compus a expressão de enfado com que irritava meu pai quando ele se punha a falar-me das aulas de Talmud. Está bem, só meia hora…»

 

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A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco

«(…) Diego está atrasado. Não percebo, disse, com um ar espantado. Diego, o impressor, era um amigo da família que meu tio andava a introduzir no círculo de iniciados, o seu grupo de místicos que se reuniam secretamente para discutir a Cabala. Apesar de ser um homem robusto, de barbas grisalhas e uns olhos castanhos dominadores como de um patriarca, as fogueiras da Inquisição (maldita) de Sevilha tinham-lhe reduzido o coração a cinzas quatro anos antes, levando-lhe a mulher e a filha; e ele próprio só a muito custo conseguira escapar. Tanto eu como meu tio procurávamos por todos os meios animá-lo e nesse mesmo dia tínhamo-lo convencido a ir dar um passeio até à mata de Sintra, de maneira a podermos ainda desenhar os grandes grous brancos antes de eles imigrarem para o Norte.

Talvez se tenha demorado em casa da família da senhora Belitura disse eu. Era uma vizinha e amiga de Diego que dois meses antes tinha sido espancada até à morte em Xabregas, na parte oriental da cidade. Ultimamente, Diego costumava passar bastante tempo com os seus familiares. Meu tio encolheu os ombros e pôs as suas mãos em concha no meu nariz. É para te refrescar, disse, enquanto eu aspirava o odor da murta nos seus dedos, se daqui a pouco não tiver chegado, vamos a casa dele ver o que se passa. Ah, e quando sairmos tenho de passar na Rua Nova dos Mercadores. Prometi a Ester ir entregar o Livro de Salmos que ela terminou. Dou-lhe só o tempo de eu e Diego bebermos um copo de vinho na Taverna do Sótão! Eram umas águas-furtadas prestes a desabar, mas onde serviam vinho casher às escondidas. Os lábios de meu tio desenharam uma vaga mas divertida repreensão. Olha, agora também me quer dar ordens!, observou.

Como única resposta compus a expressão de enfado com que irritava meu pai quando ele se punha a falar-me das aulas de Talmud. Está bem, só meia hora, concordou meu tio. Inclinou-se para mim de modo a poder passar as mãos em bênção sobre mim. Seguidamente, enquanto eu tirava corantes e tintas do armário, retirou o ferrolho da geniza, o local onde tradicionalmente se guardavam os livros antigos nas sinagogas. A nossa era um poço, aí de três pés de largura por quatro de comprimento, aberto no pavimento na orla do tapete de orações. O conteúdo estava sempre a mudar: os livros levados para fora de Portugal depressa eram substituídos por outros descobertos por meu mestre e que ele logo comprava ou pedia. Meu tio entrou na geniza para trazer o nosso trabalho. Quando voltou a subir, já eu estava a arranjar os meus pincéis e as cores. Colocando cuidadosamente o meu manuscrito no tampo ligeiramente inclinado da minha escrivaninha, passou a mão à roda da minha nuca enquanto me contava uma parábola que era também uma sugestão sobre o modo de colorir a minha mais recente iluminura, um dos contos das famosas Fábulas da Raposa. Quando tentei começar a interpretar as suas palavras, os seus lábios desataram a tremer e senti na pele a sua mão gelada. Que foi, meu tio?, perguntei. Esfregou os olhos com ambas as mãos, como uma criança, respirou profundamente como que a tomar fôlego: estás tão crescido, disse suavemente. Já meu igual em tantas coisas. Se bem que noutras, abanou a cabeça, sorrindo melancolicamente. Há tantas coisas que queria dizer-te... Beri, Deus poderá em breve pedir-nos que sigamos rumos diferentes, enfiou a mão na algibeira e sacou um rolo de pergaminho. Peço-te que aceites este pequeno presente, disse, estendendo-mo. O rolo desenrolou-se numa fita de pergaminho onde estavam gravados em hebraico ambos os nossos nomes em finas letras douradas. Foi Ester quem mo fez, continuou. Segurou-me pela nuca e numa voz ansiosa acrescentou: se alguma vez precisares de mim, onde quer que estejas, por mais longe que seja e por mais desesperadas que sejam as circunstâncias, envia-me esta fita que eu vou ter onde estiveres - pôs a outra mão na minha cabeça, fixando-me nos olhos com insistência - E se, por qualquer razão, não me encontrares ao teu alcance na terra, segura-o nas mãos e reza que eu hei-de fazer tudo para te aparecer». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.

Cortesia de QuetzalE/JDACT

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