A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) Diego está atrasado. Não percebo, disse, com um ar
espantado. Diego, o impressor, era um amigo da família que meu tio andava a
introduzir no círculo de iniciados, o seu grupo de místicos que se reuniam
secretamente para discutir a Cabala. Apesar de ser um homem robusto, de barbas
grisalhas e uns olhos castanhos dominadores como de um patriarca, as fogueiras
da Inquisição (maldita) de Sevilha tinham-lhe reduzido o coração a cinzas quatro
anos antes, levando-lhe a mulher e a filha; e ele próprio só a muito custo
conseguira escapar. Tanto eu como meu tio procurávamos por todos os meios
animá-lo e nesse mesmo dia tínhamo-lo convencido a ir dar um passeio até à mata
de Sintra, de maneira a podermos ainda desenhar os grandes grous brancos antes
de eles imigrarem para o Norte.
Talvez se tenha demorado em casa da família da senhora Belitura
disse eu. Era uma vizinha e amiga de Diego que dois meses antes tinha sido
espancada até à morte em Xabregas, na parte oriental da cidade. Ultimamente,
Diego costumava passar bastante tempo com os seus familiares. Meu tio encolheu
os ombros e pôs as suas mãos em concha no meu nariz. É para te refrescar,
disse, enquanto eu aspirava o odor da murta nos seus dedos, se daqui a pouco
não tiver chegado, vamos a casa dele ver o que se passa. Ah, e quando sairmos
tenho de passar na Rua Nova dos Mercadores. Prometi a Ester ir entregar o Livro
de Salmos que ela terminou. Dou-lhe só o tempo de eu e Diego bebermos um
copo de vinho na Taverna do Sótão! Eram umas águas-furtadas prestes a desabar,
mas onde serviam vinho casher às escondidas. Os lábios de meu tio desenharam
uma vaga mas divertida repreensão. Olha, agora também me quer dar ordens!, observou.
Como única resposta compus a expressão de enfado com que irritava
meu pai quando ele se punha a falar-me das aulas de Talmud. Está bem, só meia hora,
concordou meu tio. Inclinou-se para mim de modo a poder passar as mãos em
bênção sobre mim. Seguidamente, enquanto eu tirava corantes e tintas do
armário, retirou o ferrolho da geniza, o local onde tradicionalmente se
guardavam os livros antigos nas sinagogas. A nossa era um poço, aí de três pés
de largura por quatro de comprimento, aberto no pavimento na orla do tapete de
orações. O conteúdo estava sempre a mudar: os livros levados para fora de
Portugal depressa eram substituídos por outros descobertos por meu mestre e que
ele logo comprava ou pedia. Meu
tio entrou na geniza para trazer o nosso trabalho. Quando voltou a
subir, já eu estava a arranjar os meus pincéis e as cores. Colocando
cuidadosamente o meu manuscrito no tampo ligeiramente inclinado da minha
escrivaninha, passou a mão à roda da minha nuca enquanto me contava uma
parábola que era também uma sugestão sobre o modo de
colorir a minha mais recente iluminura, um dos
contos das famosas Fábulas da Raposa. Quando tentei começar a
interpretar as suas palavras, os seus lábios desataram a tremer e senti na pele
a sua mão gelada. Que
foi, meu tio?, perguntei. Esfregou
os olhos com ambas as mãos, como uma criança, respirou profundamente como que a
tomar fôlego: estás tão crescido, disse suavemente. Já
meu igual em tantas coisas. Se bem que noutras,
abanou a cabeça, sorrindo melancolicamente. Há
tantas coisas que queria dizer-te... Beri, Deus poderá em breve pedir-nos que
sigamos rumos diferentes,
enfiou a mão na algibeira e sacou um rolo de
pergaminho. Peço-te que aceites este pequeno presente, disse, estendendo-mo. O
rolo desenrolou-se numa fita de pergaminho onde estavam gravados em hebraico
ambos os nossos nomes em finas letras douradas.
Foi Ester quem mo fez,
continuou. Segurou-me pela nuca e numa voz
ansiosa acrescentou: se alguma vez precisares de mim, onde quer que estejas, por mais longe
que seja e por mais desesperadas que sejam as circunstâncias, envia-me esta
fita que eu vou ter onde estiveres - pôs a outra mão na minha cabeça,
fixando-me nos olhos com insistência - E se, por qualquer razão, não me
encontrares ao teu alcance na terra, segura-o nas mãos e reza que eu hei-de
fazer tudo para te aparecer». In Richard Zimler, O Último Cabalista de Lisboa,
1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimento,