Amsterdão
«(…)
Estranha cidade onde paira a sombra de Rembrandt, onde envelhecem sem
envelhecer os históricos canais, onde o mar obstinado vem morrer contra o dique
da obstinação humana, cidade de tradição que um grande mestre da Rosacruz do
passado, Gustave Merinck,
atravessou com as suas lembranças, jamais o fluxo cosmopolita dos negócios que
a invadem apagará a história que impregna os muros veneráveis de teus bairros
antigos e mesmo que, em algum dia lúgubre, a Natureza em cólera te submergisse
para sempre nas ondas torturadas do adversário, o sábio perpetuaria tua
lembrança no templo sagrado da secreta sabedoria! Nobre cidade que se faz
tristeza para o triste, alegria para o alegre, corrente para o escravo ou
liberdade para o livre, tu esposas as aspirações de teu visitante e sabes até
ser decepção para o decepcionado! Oh, como eu queria que o adepto verdadeiro,
do lado de cá do presente, perscrutasse a eterna presença de todos aqueles que
deixaram em ti a marca da alta sabedoria, pois não reservas teus segredos
apenas para o clarividente que, com um olhar, apaga o inelutável moderno para
melhor ver adiante! Para mim, já eras riqueza abrindo teus cofres repletos de jóias
de alquimia. Agora, és mais ainda para mim, porque doravante associo Maha à tua
lembrança...
O Hotel Carlton, de Amsterdão, fica próximo do centro da cidade e
dá para uma rua movimentada, do lado de arcadas cuja razão de ser nos intriga.
À minha chegada, fico sabendo que, contrariamente ao que me assegurou a minha
agência, nenhum quarto foi reservado em meu nome. Diante da importância do
encontro marcado neste hotel, chamo a agência de Paris ao telefone. Conseguirei
a ligação... Após uma hora de espera e, mal terminei, o recepcionista
precipita-se na minha direcção para me informar que minha reserva foi
encontrada e que um quarto estará à minha disposição…, amanhã! Como o meu encontro
está marcado para as dezassete horas, não protesto, e o porteiro encontra-me
facilmente um quarto para a noite no Hotel Suíço, na Kalverstraat Nem mesmo abrirei minha bagagem, tanto
me apresso em voltar ao local do esperado encontro. No dia seguinte, ao
meio-dia, estou instalado no Hotel Carlton
e, às 16h30min, estou sentado no pequeno hall, os olhos fixados na
porta que deve, daí a pouco, trazer Maha.
Ei-lo! Vejo-o transpor a grande
porta envidraçada... Aí está ele diante de mim, e eu diante dele, que permanece
de pé, sem me dar conta de que devia fazer um esforço para levantar-me. Como é
impressionante sentir, de repente, que se está em algum lugar sem lá ainda
estar, que um mundo nos cerca e que não percebemos mais nada..., mais nada, a
não ser uns olhos de extrema palidez, nos quais todo o nosso ser se abandona,
não para esquecer, mas para conhecer..., e viver! E esse sorriso de uma
infinita bondade..., um encorajamento, um apelo à confiança, à humildade, à
simplicidade! Em alguns segundos irrompem na minha consciência as impressões
passadas: Lisboa... Istambul, a cripta deslumbrante. Tudo é uma coisa só.
Quanto tempo dura este estado? Alguns segundos, menos ainda..., eu sei e, afinal,
que me importa? Podem noções como o tempo e o espaço ter significado diante da
eternidade simbolizada por esse que aí está? Ele não faz nenhum gesto e não dá
o sinal que, há algum tempo, eu aguardava. Concluo que nosso encontro não se
situará no plano anterior, onde tantas explicações me foram transmitidas sobre
a obra do Alto Conselho, do A... Não obstante, aguardo ainda alguma nova
revelação. O campo é tão vasto que só um guia esclarecido pode definir seus
contornos. Mas não sinto nenhuma curiosidade especial, pois o estado transcende
nosso miserável intelecto... Este
lugar não convém ao propósito de nosso encontro, diz Maha após alguns
instantes. Venha.
Sem uma palavra, eu o sigo. Ele
avança até a extremidade da calçada, um carro pára a alguns passos e, mal nos
instalamos, parte, silencioso, para o seu destino... Reconheço alguns canais,
depois a Leidersplein.
Atravessamos a ponte, viramos à esquerda e..., nem olho, mais, pois estou
completamente perdido. Conheço bem Amsterdão, mas infinitamente menos seu
subúrbio. No entanto, reconheceria a esplêndida residência que nos acolhe.
Moradias como esta são raras demais para serem esquecidas. Esta não tem aspecto
pesado. Fica situada no coração de um parque verdejante, cujo brilho é realçado
pela densa folhagem colorida, e a sua estrutura de tijolos claros lhe confere
um vínculo de parentesco com alguns edifícios do subúrbio de Londres. Andamos
alguns passos do carro até um pequeno patamar, de onde se tem acesso a um amplo
vestíbulo despojado: nas paredes, nenhum quadro; no ângulo oposto, um móvel
chinês finamente gravado; no centro, uma mesa baixa e duas elegantes poltronas
de estilo; nada mais que possa chamar particularmente a atenção. À esquerda,
uma grande porta envidraçada e uma minúscula sala de visitas tão despojada
quanto o vestíbulo.
Maha
me
precede e nos sentamos, um frente ao outro, numa elegante mesa rectangular. Maha parece esperar que eu
fale. Isso me surpreende, mas decido-me: um tempo relativamente curto se passou desde o insigne privilégio que o senhor
me concedeu, permitindo-me conhecer sua existência e a do Alto Conselho». In Raymond
Bernard, As Mansões Secretas da Rosacruz, 2005, Editora Zéfiro, 2005, ISBN
978-972-895-8008.
Cortesia de EZéfiro/JDACT
JDACT, Raymond Bernard, Literatura, Mistério,