«(…) O marido ergueu-o no ar e arvorou um sorriso embevecido. Reconheço-te, Prisciliano, como meu filho, autorizo-te a viver e não permitirei a tua exposição, expressou, afectado, o sublatus, o ritual sagrado de reconhecimento paternal, também proferido pelo seu pai, avô e assim sucessivamente, até à madrugada dos tempos. Orgulhoso, devolveu à mãe o petiz, que o colocou num berço ciosamente fabricado pelos carpinteiros da villa, decorado com motivos florais. Priscila sentou-se na ilharga da cama e Lucídio imitou-a, mesmo ao lado, abraçando a esposa. Um aperto carregado de carinho e afecto. Valéria informou-me que o pequeno está de boa saúde, referiu, pausadamente e em tom baixo. E logo me disse que, ao nono dia, o purificaram no altar da casa e lhe chamaram Prisciliano… Tínhamos combinado! Se fosse rapaz, ficaria ligado ao meu nome, se fosse rapariga, ao teu. Quem sabe, ainda teremos uma Lucídia!, respondeu, rindo e encostando a cabeça ao ombro do marido. Lucídio acabava de voltar da jornada bracarense, a meio de um dia soalheiro, a tempo de um frugal prandium de pão, queijo e azeitonas. Priscila, preocupada, ainda aguardara pelo esposo até à primeira vigília da noite anterior, pois achava que já devia ter chegado, mas em vão. Dormira intranquila. Porque te atrasaste tanto? Tive umas reuniões imprevistas…, de última hora, respondeu, com o olhar distante. Não quis apoquentar a esposa com os acontecimentos da capital. Percebeu que o que interessava mesmo ao gordo Ithacio era encontrar um bom motivo para convencer o rico proprietário do norte a deixar umas moedas a mais por baixo da mesa. Não tenho recibo para lhe dar… O patrão saiu para as termas!, dissera-lhe o criado de Ithacio, sabedor dos artifícios do seu senhor, quando lhe apresentara a conta do imposto alegadamente em débito e que, tão certo como o destino, não iria parar aos exauridos cofres do imperador Constâncio.
Quando analisava a frio os
acontecimentos durante a viagem, e aproveitando uma conversa descontraída com
os servos, Lucídio achou que fora a melhor decisão. Muito embora não fosse
devoto de Ísis, concluíra, como assegurou com Valéria logo à chegada, que tudo
não passara do ancestral rito propiciatório de bonança tão costumeiro na
Galécia. No caso, em favor do próprio filho! E que funcionou na plenitude, como
lhe asseverou a experiente mulher, quando confidenciou: Ísis continua protectora
e maternalmente ligada aos seus mais fervorosos adeptos! Os sacrifícios
poderiam ser enquadrados, se uma mente maldosa e astuciosa os acusasse, na
categoria de maleficium.
Por isso, quando confrontado com a falsa nota fiscal, Lucídio preferiu não
correr riscos e pagou o que o soberbo Ithacio lhe receitou. O caso ficaria por
ali! O que sobrou daquele episódio e que continuava como um pingo de vinagre a
azedar o coração de Lucídio foi não saber ao certo quem fora o apressado
delator da visita de Priscila ao santuário de Ísis. O pai de Prisciliano
arrumou interiormente a questão, conjecturando uma plausível vinda de um espião
de Ithacio aos seus domínios em busca de informação que pudesse usar contra si,
na extorsão.
Mas estava enganado. Em Bracara
Augusta, o cobrador de impostos celebrava com taças de vinho o pecúlio que
habilmente surripiara a Lucídio. Este caiu como um tordo!, dizia, ébrio e
deitado sobre a mesa do triclinium,
para o escravo de confiança, que o ajudava nos serviços sujos. Sim, não tinha
escapatória… O crime de maleficium
é o caminho certo para a desgraça. O homem ia morrendo de susto. Quanto não
vale manter a rede de informadores! Uma informação, pequena ou incipiente que
seja, pode valer uma fortuna! Aprendi em Roma, a grande escola do império. Vá, enche-me
a taça e bebe também um trago! Fizeste um excelente serviço. Senhor, estou às
suas ordens. Cumpro o que me manda! Na ampla sala de refeições da domus bracarense,
embelezada de pinturas e mosaicos finos com desenhos de motivos florais, entrara
o filho mais velho de Ithacio, que tinha o nome do pai. Ithacito, vem cá! O
redondo rapaz, ainda de tenra idade, mas que era uma fiel imitação paterna na
gula como na astúcia, aproximou-se. Sim, meu pai! Em que posso ajudar? Virando-se
para o escravo, ordenou o senhor da casa: o meu filho vai contigo à basílica!
Leva este donativo ao bispo, pois o que foi tirado a um rico idólatra não é
pecado aos olhos de Deus. O bispo precisa de ajuda para as obras do templo e
para engrandecer a comunidade cristã. E eu preciso de ficar bem visto. O
escravo pegou no saco de moedas e reparou que era uma reduzida parte do que Lucídio
pagara. Ithacio apagava os remorsos com pouco dinheiro. Ambos foram cumprir a
missão. Quando regressaram, o escravo pediu para falar a sós com o amo. Senhor,
o bispo ficou muito satisfeito. Agradece-lhe e está feliz por vê-lo, assim como
à sua família, fiéis e participativos devotos. Esse bispo tem de estar do nosso
lado. Mas não devo esconder-lhe outra coisa, senhor… O quê?! O pequeno Ithacio…
Desembucha, homem!…, tirou umas moedas do saco, antes de as entregar ao bispo… Ithacio
arregalou os olhos e disparou uma gargalhada que ecoou pelas paredes pintadas
do triclinium. O escravo
manteve-se impávido. O meu filho está a aprender… O rapaz vai longe!, sorriu,
bem avinhado. Vá, mantém o contacto com o escravo de Lucídio e os dos outros
senhores da Galécia e paga-lhes convenientemente os serviços. Nunca te esqueças:
a informação é o bem mais precioso para um cobrador de impostos! Mas sempre com
discrição: se alguém descobre, só tu serás o culpado… Na Villa Aseconia,
Flaviano comentou com Priscila que desconfiava que Arménio traíra Lucídio,
explicando-lhe em segredo o que sabia dos acontecimentos de Bracara. Por prudência,
reservou a informação para si, mas pediu a Flaviano para redobrar a atenção
sobre o cristão». In Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013,
ISBN 978-972-068-096-9.
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JDACT, A Escrita, Alberto S. Santos, Galiza,