A descoberta do manuscrito de Berequias Zarco
«(…) No topo da parede a norte, à altura do pavimento da
entrada, uns postigos em ilhó deixavam entrar uma luz suave e pálida. Ao fundo das escadas, que ladeavam a parede a
oriente, ficava o círculo do nosso tapete de orações. Em torno dispunham-se sete
tufos de plantas verdejantes em vasos de barro, um por cada dia da Criação.
Três eram de murta, três de alfazema e o restante, simbolizando o Shabat, era
uma mistura dessas duas plantas. A metade da sala além do tapete, virada a
poente, era o reino dos nossos trabalhos terrenos, onde tia Ester copiava
manuscritos e eu e meu tio os decorávamos com iluminuras. As nossas três
escrivaninhas de castanho finamente polido ficavam face à parede a norte, a
reduzida distância umas das outras, de modo que podíamos ver o trabalho uns dos
outros. Cada um de nós dispunha de uma cadeira de espaldar alto. No lado
oposto, face à parede a sul, viam-se dois lavatórios de granito cavados no
solo. No meio ficava o tosco armário de carvalho onde guardávamos o material,
tinha uns pés em forma de patas de leão e oito fiadas de dez gavetas, baixas e
compridas, como as caixas de tipos das oficinas de impressor. A última fiada,
em baixo, tem só duas gavetas, onde guardamos as folhas de ouro e o lápis-lazúli.
O que de mais estranho havia na sala, era sem dúvida o
espelho redondo, como uma bandeja, colocado na parede, por cima da escrivaninha
do meio, onde se sentava meu tio. O espelho, com uma moldura de castanho,
possuía uma superfície de prata, côncava, o que tornava achatadas e distorcidas
as imagens que reflectia. Costumávamos mirá-lo vezes sem conta ao iniciarmos as
nossas meditações, como um meio de libertarmos o espírito da vista habitual,
especialmente da imagem familiar do corpo. Este espelho tinha-se tornado de
certo modo famoso nas imediações por se dizer que no dia seis de Junho de 1391
da era cristã tinha ressumado sangue pela morte de dezenas de milhares de
judeus mortos nas perseguições que então assolavam a Ibéria. A verdade é que o
bisavô Abraão sustentava que o espelho vertia uma ínfima lágrima de sangue,
invisível ao olhar, sempre que um único judeu morria. Acreditava que o sangue
se tinha tornado visível na época das perseguições contra os judeus por então
terem matado tantos dos nossos. Foi assim que desde então passaram a chamá-lo o
espelho que sangra.
Todos esperávamos que nunca mais tivesse ocasião de nos revelar os
seus poderes. Precisava que mijasses, disse meu tio, encaminhando-me para os
lavatórios no chão. Agora?, perguntei. Aqui, disse, pegando numa infusa que
estava à beira da bacia. É Primavera. Preciso do mijo de alguém virgem. Todos
os anos, exactamente antes da Páscoa, meu mestre fabricava novos corantes e
tintas para as nossas iluminuras. O ácido da urina, ao atacar certos elementos
criava cores diferentes, em especial um rosa finíssimo, quando se misturava com
pau-brasil, alúmen e alvaiade, e um carmim brilhante se combinado com cinzas de
videira e cal viva. Há muito que deixei de ser virgem, disse eu, enquanto a
imagem de Helena se tornava presente tal como a vira nas colinas que dominam o
grande convento em construção a ocidente de Lisboa. Tinha esperado tão
longamente pela sua decisão! Até quase pensar que o amor e a vida seriam para
mim diferentes do que eram para os
demais. E de um momento para o outro, quando tudo parecia perdido e o barco que
a deveria levar para Corfu estava já ancorado em Lisboa, os braços dela
abriram-se para mim como os portões da graça de Deus. Alguma barregã na
Estalagem da Flor da Rapariga?, perguntou meu tio, despertando-me do meu
devaneio. Vezes sem conta tinha-me recomendado uma casa de má nota fora das
muralhas da cidade. Assim que respondi Helena, levantou as sobrancelhas numa
expressão maliciosa: seja como for, és o que posso arranjar de mais parecido
com alguém virgem, sem ter de revelar que continuamos a fazer iluminuras de
livros hebraicos, judas é ainda pequeno, eu demasiado velho e a urina das
mulheres é forte de mais, especialmente a de tua tia. Usei-a há muitos anos
quando nos casámos: ficou tudo preto como a alma de Asmodeu. Trocámos um
sorriso de troça. Agora percebo porque esteve a encher-me de líquidos, disse
eu. Enquanto as minhas águas jorravam quentes e espumosas nos jarros, meu tio
dirigiu-se para as escrivaninhas no
passo bamboleante que costumava adoptar nas sinagogas e começou a espanejá-las.
Depois de ter urinado em seis dos jarros de barro e de os ter tapado
cuidadosamente, coloquei-os nos lavatórios. Meu tio lavou as mãos e sacudiu-as
para o tufo de murta e alfazema do Shabat». In Richard Zimler, O Último Cabalista de
Lisboa, 1996, Quetzal Editores, Lisboa, ISBN 978-972-004-491-4.
Cortesia de QuetzalE/JDACT
JDACT, Richard Zimler, Judeus, História Local, Conhecimento,