Verão de 1979
«(…) Agora foi a vez de Johann
colocar o travesseiro na cara. Ele tentou bloquear o falatório interminável;
ela era como um disco quebrado. Mas o seu travesseiro também foi arrancado. Ele
sentou-se, de ressaca, e sua cabeça latejou como uma banda marchando. Já faz
tempo que tirei a mesa do café da manhã. Vão ter que pegar algo na geladeira vocês
mesmos. O traseiro imenso de Solveig rebolou para fora do quartinho que os dois
irmãos ainda dividiam, e ela bateu a porta atrás de si. Eles não ousaram tentar
dormir de novo; pegaram um maço de cigarro e acenderam um cada um. Podiam ficar
sem o café da manhã, mas o cigarro melhorou o humor deles, causando uma
ardência boa nas suas gargantas. Ontem à noite foi do cacete, hein? Robert riu
e soprou anéis de fumaça no ar. Eu disse que eles tinham material de primeira
em casa. Ele é director de uma companhia em Estocolmo. Graças a Deus, um
sujeito assim pode ter do bom e do melhor. Johann não respondeu. Diferentemente
do irmão, ele não curtia uma descarga de adrenalina provocada pelos
arrombamentos. Em vez disso, passava vários dias, antes e depois, com uma
enorme bola gelada de medo no estômago. Mas sempre fazia o que Robert mandava;
nunca lhe ocorreu que pudesse agir de outro modo. O arrombamento da noite
passada lhes rendera o maior lucro que tiveram em muito tempo. A maioria das
pessoas agora tinha receio de deixar coisas caras nas casas de veraneio. Em
geral, usavam coisas velhas, que de outra forma teriam jogado fora, ou aquisições
de segunda mão, que lhes davam a sensação de ter comprado um tesouro, mesmo que
fossem uma mer… Mas dessa vez eles tinham conseguido uma TV nova, um aparelho
de DVD, um Nintendo e um monte de jóias que haviam sido da dona da casa. Robert
venderia o material por seus meios habituais e conseguiria um bom dinheiro. Não
que fosse durar muito tempo. O dinheiro roubado parecia sempre queimar um
buraco nos seus bolsos e desaparecia depois de umas duas semanas. Eles o
gastavam jogando, saindo e pagando as despesas dos amigos e com outros gastos
necessários. Johann olhou o relógio caro que usava. Por sorte, a mãe deles não
conseguia reconhecer um bem valioso quando via um. Se soubesse o quanto custava
aquele relógio, a excepção
não terminaria nunca. Às vezes,
ele se sentia aprisionado, como um hamster num carrossel, girando e girando
enquanto os anos passavam. Nada mudara de facto desde que ele e o irmão eram adolescentes,
e ele tampouco via possibilidade de isso ocorrer agora. A única coisa que dava
sentido à sua vida era a única coisa que mantinha em segredo para Robert; uma intuição
bem lá dentro lhe dizia que contar ao irmão não traria nada de bom. Robert apenas
transformaria tudo em algo sujo com seus comentários grosseiros. Por um
segundo, Johann permitiu-se pensar na maciez do cabelo dela contra sua face áspera
e em como a mão dela parecia pequena quando ele a tinha entre as suas.
Ei, não fique aí sonhando
acordado. Temos negócios a tratar. Robert levantou-se com o cigarro pendendo do
canto da boca e foi o primeiro a sai pela porta. Como sempre, Johann o seguiu,
pois era tudo que sabia fazer. Na cozinha, Solveig estava sentada em seu lugar
de costume. Desde que Johann era um garotinho, desde aquele incidente com seu
pai, ele a via sentada na sua cadeira junto à janela, os dedos remexendo
ansiosos com o que estivesse à sua frente na mesa. Nas lembranças mais antigas,
sua mãe era bela, mas ao longo dos anos a gordura foi-se acumulando em camadas
mais e mais espessas, no rosto e no corpo. Solveig parecia estar em transe; os
dedos tinham vida própria e nunca paravam de apanhar coisas e alisá-las. Fazia
quase vinte anos que ela mexia com aqueles malditos álbuns de fotos,
organizando e reorganizando tudo. Ela comprava álbuns novos e então rearranjava
as fotos e os recortes. De um jeito melhor, mais elegante. Ele não era tão estúpido
a ponto de não perceber que aquele era o meio pelo qual ela se apegava a tempos
mais felizes, mas algum dia, com certeza, ela perceberia que aqueles tempos já tinham
se passado havia muito. As fotos eram da época em que Solveig era bela. O ponto
alto de sua vida fora o casamento com Johannes Hult, o filho mais novo de
Ephraim Hult, o conhecido pastor da Igreja Livre e proprietário da fazenda mais
próspera da região. Johannes era atraente e rico. Solveig podia ter sido pobre,
mas era a garota mais linda de Bohuslän; todos diziam isso à época. E se mais
provas fossem necessárias, seriam suficientes os artigos que ela guardara, de
quando foi coroada Rainha de Maio por dois anos seguidos. Eram aqueles artigos
e as muitas fotos em preto e branco dela, como uma bela jovem, que ela guardara
e organizara com diligência a cada dia nos últimos vinte anos. Ela sabia que aquela
garota ainda estava lá, em algum lugar debaixo de todas as camadas de gordura. Por
meio das fotos, podia manter viva a garota, mesmo que ela deslizasse para mais
e mais longe a cada ano que passava. Com um último olhar sobre o ombro, Johann
deixou a mãe sentada na cozinha e seguiu Robert porta-fora. Como Robert
dissera, eles tinham negócios a tratar.
Erica cogitou sair para dar uma
volta, mas percebeu que não devia ser uma boa ideia naquele momento, com o sol
lá no alto e o calor no máximo. Ela estava levando muito bem a gravidez até que
a onda de calor chegou. Desde então, ela se movia como uma baleia suada,
buscando desesperada um meio de se refrescar. Patrik, que Deus o abençoe, teve
a ideia de comprar-lhe um ventilador de mesa, e ela agora o carregava consigo
como um tesouro, para onde quer que fosse na casa. O único incómodo era ter que
ligá-lo na corrente eléctrica, de modo que ela nunca podia sentar-se a uma distância
de uma tomada maior do que a extensão do fio, o que limitava suas opções. Mas a
tomada da varanda estava bem localizada, e ela podia acomodar-se no sofá com o
ventilador na mesa à sua frente. Nenhuma posição era confortável por mais de cinco
minutos, e ela ficava o tempo todo tentando se ajeitar. Às vezes, sentia um pé chutando
as costelas ou algo como um punho acertando-lhe o flanco. Então era forçada a mudar
de posição de novo. Ela não fazia ideia de como aguentaria mais um mês disso. Fazia
apenas meio ano que ela e Patrik estavam juntos quando ela engravidou, mas estranhamente
aquilo não incomodou nenhum dos dois. Ambos eram um pouco mais velhos, estavam
um pouco mais certos do que queriam e não achavam que houvesse qualquer motivo
para esperar mais. Só agora ela começava a se assustar, aos quarenta e cinco do
segundo tempo, por assim dizer. Talvez eles não tivessem compartilhado o suficiente
do dia a dia antes de embarcar nessa gravidez. O que aconteceria a seu relacionamento
quando de repente surgisse um pequeno desconhecido, que iria requerer toda a
atenção que antes eles podiam devotar um ao outro? A paixão enlouquecida e cega
dos primeiros dias juntos já se diluíra, claro. Agora tinham bases mais
realistas, mais quotidianas, sobre as quais construir a relação, com uma melhor
compreensão das coisas boas e ruins de cada um. Mas e se, depois que o bebé nascesse,
só restassem as coisas ruins? Quantas vezes ela ouvira falar das estatísticas sobre
todos os relacionamentos que naufragavam durante o primeiro ano da vida de um bebé?
Bom, não fazia sentido preocupar-se com isso agora. O que estava feito estava feito,
e não havia como ignorar o facto de que tanto ela como Patrik ansiavam pela chegada
dessa criança com todas as fibras de seus corpos. Ela esperava que esse sentimento
de expectativa fosse suficiente para conduzi-los através das mudanças turbulentas
que se aproximavam». In Camila Läkberg, Gritos do Passado, 2004,
Edições Dom Quixote, 2010/2011, ISBN 978-972-204-348-9».
Cortesia de EdomQuixote/JDACT
JDACT, Camila Läkberg, Literatura,