Vaticano. 19 de Abril de 2005
«(…) Não te pedi ajuda, Tarcísio.
Nem a aceitava. Não lamentes, nem te preocupes com isso. A congregação tomará a
decisão que entender. Se considerar que as minhas opiniões se coadunam com as
da Igreja tudo bem, se considerar que não tudo bem na mesma. Qualquer cenário
me serve e nenhum me afectará. A segurança com que Schmidt proferiu aquelas
palavras impressionou Tarcísio. Vinham do fundo dele mesmo, sentidas, sinceras,
sem qualquer presunção ou perfídia. Schmidt mudara muito nos últimos anos. Espero
que corra pelo melhor. Assim Nosso Senhor o queira, desejou o piemontês. Nosso
Senhor não tem nada a ver com isto, concluiu Schmidt. Achas mesmo que Ben Isaac
não tem nada a ver com isto?, tornou ao assunto anterior que ainda faltava
encerrar. Sugiro que tentes encontrá-lo, se não for demasiado tarde. Como
assim? Pensa um pouco, Tarcísio. Mataram o Zafer e o Aragonês. Podemos, muito bem,
recear pelo destino do Sigfried e do clã Isaac. Mas quem estará por detrás
disto tudo?, inquiriu Tarcísio. Com que intenção? Isso não sei dizer. Quem quer
que seja está a revelar que não olha a meios, depois parou de falar e deixou o
cérebro fazer as contas. Hum. Interessante. O quê? Os intervenientes do Statu Quo estão todos a
ser eliminados, disse ainda com uma expressão pensativa. E? Faltam dois.
A história tende a escrever-se com cinzeladas profundas que acabam por se esbater com o tempo que passa, dissolvem-se nos minutos corrosivos, nos dias ácidos da chuva do esquecimento. Os insignificantes jamais terão direito a descerramento de placas que registam o nascimento, local onde viveram, feitos de relevância para a história da comunidade, quedar-se-ão nas memórias de quem privou com eles até que também dessas se esvaiam e terminem apenas numa esquecida placa de cemitério, sobre uma laje de mármore, com data de proveniência e de partida. Ninguém lembraria os feitos de Yaman Zafer, não que os não tivesse feito, mas porque se preocupou sempre em ocultá-los o melhor que podia. As últimas horas de vida haviam provado que o melhor que podia não fora suficiente. Rafael debruçou-se sobre o chão nojento, gorduroso, repleto de manchas escuras. Observou apenas, em silêncio, como se esperasse que o local falasse por si. Doía. Conhecia Zafer e os filhos há mais de 20 anos. Não se podia dizer que o via amiúde, na realidade passavam anos sem se verem, meses sem dizerem uma palavra um ao outro, mas sabiam-se juntos em todos os momentos. Isso extinguira-se. Ainda não percebi o que esperas encontrar aqui, resmungou Jacopo, de pé, observando o padre.
Ainda
não percebi o que estás aqui a fazer, retrucou o outro. Sabes perfeitamente porque
estou aqui. Tinham chegado a Paris quase à meia-noite. O voo decorrera sem problemas,
palmilhando milhas na escuridão nocturna. Jacopo aproveitou para discorrer a
sua teoria sobre a falta de provas das histórias que estão escritas na Bíblia.
Rafael escutava sem prestar atenção. Até ao final do século XIX a veracidade da
Bíblia nunca foi posta em causa. São evangelhos divinos ou inspirados por Deus.
A verdade é que, enquanto pôde a Igreja não deixou os próprios fiéis lerem o
seu livro sagrado na sua língua materna. Era crime. Punido com pena de
morte, sabes disso muito bem. Os seus gestos teatrais não impressionavam
Rafael. Foi o Papa Paulo V, no século XVII, quem disse: Não sabeis que ler muito a Bíblia prejudica
a Igreja Católica?, citou
com sarcasmo. Agora pensa um bocadinho. Que Igreja, ainda para mais uma das
chamadas Religiões do Livro, que baseia os seus dogmas no Livro proíbe os
crentes de lerem o Livro sagrado que dá crédito a tudo o que pregam? Fez um silêncio
teatral. No século XIX iniciou-se uma febre arqueológica que tinha por
objectivo obter provas sobre os factos,
não se coibiu de desenhar umas aspas no ar quando disse esta palavra,
narrados na Bíblia. Escavaram em tudo o que era sítio. Na Palestina, no Egipto,
na Mesopotâmia, em variadíssimos locais do Próximo e do Médio Oriente. Queriam
encontrar o Templo, erigido por Salomão, ou vestígios da Arca de Noé, qualquer
coisa que comprovasse um só facto da Bíblia. Paul Émile Botta, cônsul francês
em Mossul, deu início à corrida, Austen Henry Layard, diplomata inglês, foi o
seguinte, depois outro inglês, também Henry, embarcou na demanda». In
Luís Miguel Rocha, A Mentira Sagrada, Porto Editora, 2011, ISBN 978-972-004-325-2.
Cortesia de PEditora/JDACT
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