«(…) A Lucídio, o que interessava verdadeiramente por aqueles dias era reencontrar-se com a pacatez do quotidiano, fruir das benesses e do sossego da vida rural, visitar e receber os amigos, deleitar-se em caçadas pelo interior dos seus largos domínios e preparar as próximas festas. E, claro, um banquete em honra do nascimento do primeiro filho, aproveitando a celebração da Caristia. Era o feriado comemorativo do dia da família, nove dias depois da Parentalia, o período destinado às visitas aos túmulos dos antepassados para convívios em nocturnas refeições. Escolheu a Caristia desse ano de 350, no oitavo dia antes das calendas de Março, o dia 22 de Fevereiro do ano cristão, para apresentar Prisciliano formalmente a toda a família. Nas vésperas desses venturosos dias, o orgulhoso jovem pai mandou colocar um ankh na imponente entrada da domus da villa. Esta antiga crux ansata egípcia, encimada por um círculo, significava vida, precisamente aquilo que mais se havia desejado, gerado e protegido na Villa Aseconia.
Por aqueles tempos, o Império
Romano era governado pela família constantiniana, mas o barco imperial criado
por Constantino, o Grande, era demasiado amplo e complexo para um único
comandante. Em 326, por razões que só ele poderia explicar, o imperador ordenara
a morte de Crispo, o seu primogénito e césar das Gálias. Disseram as
más-línguas que Constantino não tolerara que o próprio filho governasse com
tanta distinção e comandasse as tropas com assinalável êxito. Uma sombra a
prevenir. Já em 335, aquele que sobre a velha colónia grega de Bizantium
fundara a florescente cidade de Constantinopla, a Nova Roma do oriente, nomeara
césares os três filhos, dividindo o império em outras tantas partes e
entregando cada uma à sua governação. Constante, o mais novo, ficara com a parte
central, Itália, África e o Ilírico. Ao do meio, Constâncio, coubera governar o
oriente, Ásia e Egipto. E, ao mais velho, Constantino, como o pai, a sorte
ditara-lhe o ocidente, as Gálias, a Hispânia e a Britânia. O velho imperador
concedera ainda honras de governação de pequenos territórios a dois sobrinhos, a
Flávio Dalmacio coubera o Baixo Danúbio e a Hannibaliano o Nordeste da Síria e
o título de rei da Arménia, mas rapidamente se iniciou o processo de reposicionamento
do poder e eles foram assassinados.
Constantino morreria em 22 de
Maio de 337 e logo em 9 de Setembro seguinte os três césares seriam elevados a
Augustos. Reunidos em Viminacium, repartiram o império, já sem primos pelo
meio. Constante ficara com o Ilírico, Constantino II com o ocidente e Constâncio
II com o oriente. Contudo, Constantino II viria a morrer em 340, nas
proximidades de Aquileia, quando tentava apoderar-se dos territórios do irmão
Constante. Este aproveitara para tomar de imediato conta das suas terras,
tornando-se senhor do Ilírico e do ocidente e, por conseguinte, da Hispânia. O
império do dia 6 de Janeiro de 349, quando Prisciliano nascera, não era o mesmo
no dia em que festejou o sétimo aniversário. Constante fora igualmente
assassinado em 350. Com efeito, o exército, insatisfeito com o imperador
reinante, ofereceu a púrpura a Magnêncio, o comandante das Herculianas e
Jovianas, unidades da guarda imperial, a 18 de Janeiro desse ano. O imperador
fora encurralado nos Pirenéus e, num ápice, perdeu o reinado e a vida. O
usurpador Magnêncio tornava-se, por força da violência, no senhor do ocidente,
a quem toda a Hispânia se rendera. Restabelecida a normalidade na villa e no império,
Priscila viajara discretamente a Iria Flavia. Fora deixar, como devia, o
ex-voto a Ísis, uma cabeça de bebé esculpida em granito. E ainda uma lápide,
elaborada pelos canteiros da casa na mesma pedra granítica, como agradecimento
à divina intercepção pela saúde do filho.
A vida em Villa Aseconia foi-se
sucedendo ao ritmo previsto para os comuns mortais. Prisciliano foi desfrutando
de uma infância sossegada e feliz. Valéria ajudava a cuidar do petiz, brincava
e contava-lhe histórias assombrosas e com gladiadores. A mente inquieta daquele
rapaz forte e moreno fervilhava de fantasias. Sonhava conhecer terras
distantes, descobrir os duendes dos bosques e viajar até à lua. Passava horas a
olhar para o céu imaginando-se a brincar com as estrelas e a correr sobre a Via
Láctea. Prestava especial atenção quando Valéria lhe narrava, antes de deitar,
contos sobre uns seres extraordinários a que chamavam druidas, e que habitavam
as antigas florestas, onde produziam poções mágicas capazes de dar vigor aos
homens das suas tribos. Logo sonhava tomar um desses preparados, subir às
árvores e voar como um pássaro, descobrindo todo o mundo conhecido e
desconhecido. Mas havia algo que passou a diverti-lo e, depois, a inquietá-lo.
Descobriu que a estrada, junto à mansio
de Aseconia, era o local que, afinal, trazia e levava gente para o resto do
mundo. E haveria de perceber quem eram essas pessoas e os fins que as motivavam
a percorrer aquele caminho: legionários, transportadores da posta, ricos
proprietários em visita às suas terras e não só… Valéria, há pessoas estranhas
que caminham em direcção ao mar… Regressam, passados uns dias, com ar mais leve
e feliz… É um costume antigo!, respondeu, com um sorriso e a mente em busca da
melhor explicação a dar ao pequeno. Chega aqui, vou contar-te um segredo! Prisciliano
aproximou-se, entusiasmado. Há uma prática muito antiga, que ouvi contar em
pequena aos meus avós… O rapaz abriu os olhos, cheio de curiosidade. Desde os
tempos ancestrais que se sabe que vem gente de muito longe até ao nosso mar em
busca de saúde…, saúde interior… Saúde interior?! Sim, imagina que não andas
bem contigo próprio e precisas de um remédio… Prisciliano esforçou-se, mas
pouco entendeu das explicações de Valéria. Nem a idade lho permitia ainda. O
certo era que, sempre que podia, ia ver gente passar na estrada. E assim
crescia o petiz, devagar e alegre, ao ritmo dos ciclos agrários e sempre sob os
olhos atentos do pai e da mãe. Até que, um belo dia, ouviu os primeiros choros
de um novo ser na villa:
chegara Lucídia, a desejada irmã, como estava previsto e desejado.
Entretanto, a instabilidade
voltara à parte ocidental do império. Magnêncio procurava, por todos os meios,
reforçar o seu poder. Do oriente chegavam notícias de uma sublevação do
exército panónio e da aclamação de Vetrânio, o seu comandante, mas demorou
pouco até que Constâncio tivesse todas as tropas ao lado para enfrentar o
usurpador na Batalha de Mursa Major, em 351. Contava-se que Magnêncio guiara as
tropas na batalha, enquanto Constâncio passara o dia a rezar numa igreja
próxima. Contudo, apesar do aparente heroísmo de Magnêncio, as suas tropas
foram vencidas e forçadas a retroceder até à Gália. A Itália não tardaria a
juntar-se a Constâncio. Magnêncio tentou a sua última sorte, em 353, em Mons
Seleucus, mas estava destinado a morrer, suicidando-se, ao fazer-se cair sobre
a própria espada. Desde então, havia um único imperador para todo o império:
Flávio Júlio Constâncio, o filho do meio de Constantino, o Grande, o homem a
quem, naquele século, estava destinado governar o império por mais tempo». In
Alberto S. Santos, O Segredo de Compostela, Porto Editora, 2013, ISBN
978-972-068-096-9.
Cortesia de PEditora/JDACT
JDACT, A Escrita, Alberto S. Santos, Galiza,