Bastia. Córsega
«(…) Pousou o olhar sobre o Jetée
du Dragon, um cais artificial que existia havia poucas décadas. Para construí-lo,
os engenheiros tinham destruído um rochedo gigante, em forma de leão, chamado
Il Leone, que bloqueava o porto e havia figurado proeminentemente em várias
gravuras pré-século XX. Duas horas antes, enquanto o Archimedes adentrava a área
de águas protegidas, avistara a torre de menagem do castelo, construída pelos
governantes genoveses do século XIV, sobre a qual estava agora, às escuras, e
perguntara-se se aquela noite seria a noite. Esperava que sim. Córsega não
estava entre os seus lugares predilectos. Não era nada além de uma montanha que
brotava do mar. Com 185 quilómetros de comprimento, 83 de largura, 14.244 quilómetros
quadrados e 965 quilómetros de costa. A geografia variava de picos alpinos a
desfiladeiros profundos, florestas de eucalipto, lagos glaciais, pastos, vales
férteis e até algum deserto. Em épocas distintas, gregos, cartagineses,
romanos, aragoneses, italianos, britânicos e franceses a haviam conquistado,
mas sem jamais conseguir subjugar o espírito rebelde da ilha. Outro motivo pelo
qual desistira de investimentos: havia inconstância demais nesse département
francês rebelde.
Os industriosos genoveses
fundaram Bastia em 1380 e construíram fortalezas para protegê-la, a torre onde
ele se encontrava era uma das únicas restantes. A cidade fora capital da ilha
até 1791, quando Napoleão decidiu que seu local de nascimento, Ajaccio, ao sul,
seria a melhor opção. Ele sabia que os habitantes ainda não tinham perdoado o
pequeno imperador por essa transgressão. Abotoou o sobretudo Armani e
colocou-se próximo a um parapeito medieval. A camisa sob medida, as calças e o
suéter colavam-se ao corpo de 58 anos, dando-lhe um sentimento tranquilizador
de confiança. Comprara o conjunto na Kingston & Knight, à moda do seu pai e
do avô. No dia anterior, em Londres, o barbeiro havia passado meia hora
aparando a sua juba grisalha, eliminando as ondas descoradas que o faziam
parecer mais velho, linha orgulho do modo como mantinha a aparência e o vigor
de alguém mais jovem e, enquanto continuava a olhar para o Mar Tirreno no
horizonte, para além de uma Bastia envolta em escuridão, saboreou a satisfação
de ser um homem que tinha chegado a algum lugar. Olhou para o relógio de pulso.
Viera desvendar um mistério que
havia torturado caçadores de tesouros por mais de sessenta anos e detestava
atrasos. Ouviu passos vindos de uma escadaria próxima, que se erguia a 20
metros de altura. Durante o dia, turistas tolos subiam para admirar o cenário e
tirar fotos. Àquela hora, não havia visitantes. Um homem surgiu no meio à luz ténue.
Era pequeno e tinha uma cabeleira vasta e volumosa. Duas linhas profundas marcavam-lhe
o rosto, como cortes que iam das narinas até a boca. A pele era morena, num tom
semelhante ao de uma casca de noz, a pigmentação escura acentuada por um bigode
branco. E estava vestido de padre. Ao se aproximar, os saiotes negros
farfalharam. Lorde Ashby. Minhas desculpas pelo atraso, mas foi inevitável. Um
padre?, perguntou, apontando para a batina. Achei que seria o melhor disfarce
para esta noite. Não instiga muitas perguntas. O homem inspirou algumas vezes,
ainda sem fôlego devido à subida. Ashby escolhera o horário cuidadosamente e
cronometrara a sua chegada com precisão britânica. Mas a programação agora
estava atrasada em cerca de meia hora. Detesto aborrecimentos, disse, mas, às
vezes, uma discussão franca, cara a cara, faz-se necessária. Apontando-lhe um
dedo, continuou: o senhor é um mentiroso! Sou sim. Admito-o sem ressalvas. E
custa-me tempo e dinheiro, duas despesas dispensáveis. Infelizmente, lorde
Ashby, encontro-me em escassez de ambos, fez uma pausa. E sabia que o senhor
precisava da minha ajuda. Da última vez, deixara que o homem soubesse demais. Um
erro.
Algo havia acontecido em Córsega
em 15 de Setembro de 1943. Seis caixotes foram trazidos do oeste, da Itália, de
barco. Alguns diziam que haviam sido jogados ao mar, próximo a Bastia; outros
acreditavam que foram levados até à praia. Os relatos eram unânimes quanto à
participação de cinco alemães. Quatro deles submetidos à corte marcial por
deixarem o tesouro num local que viria a cair nas mãos dos aliados e, por isso,
executados. O quinto fora exonerado. Infelizmente, não estava a par do esconderijo
final, portanto procurara-o em vão pelo resto da vida. Como diversos outros. Mentiras
são as únicas armas de que disponho, esclareceu o corso. São o que mantém
homens poderosos como o senhor em xeque. Senhor... Atrevo-me a dizer que não sou
muito mais velho do que o senhor. Embora não tenha uma fama tão ruim. Sua
reputação é notável, lorde Ashby. Ele assentiu, concordando com a observação.
Compreendia o que a imagem era capaz de fazer para, e por, uma pessoa. Por três
séculos, sua família possuíra o controle da maioria das acções de uma das
instituições de empréstimos mais antigas da Inglaterra. Era, agora, o único
dono daquele legado. A imprensa britânica certa vez descrevera seus luminosos
olhos cinzentos, seu nariz romano e seu sorriso contido como o semblante de um
aristocrata. Um repórter, poucos anos antes, classificara-o como imponente,
enquanto outro o descrevera como moreno e saturnino. A referência ao seu tom de
pele, a ele conferido pela descendência turca da sua mãe, não chegava a incomodá-lo,
mas o mesmo não poderia ser dito quanto a ser considerado taciturno e sombrio».
In
Steve Berry, Vingança em Paris, 2011, Livros d’Hoje, 2012, ISBN
978-972-204-916-0.
Cortesia de Ld’Hoje/JDACT
JDACT, Steve Berry, Literatura,