sexta-feira, 11 de setembro de 2020

Fernando Campos. A Casa do Pó. «… a mui nomeada e agradável égloga chamada Crisfal, que conta os infelizes amores de Cristóvão Falcão ao que parece aludir o nome da mesma égloga»

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A porta do mundo

«(…) Ouviam-se os pregões cantados dos aguadeiros, das peixeiras, carvoeiros, retalhos de conversas em que não raro se distinguiam línguas estrangeiras. Dois homens criticavam o surto de grandes riquezas que apareciam sem se saber como: quem tira todo o proveito, dizia um, são os que de todas as mercadorias fazem estanques e de um momento para o outro engrossam tanto! Ora a novidade! Esses eram ladrões fidalgos!, ripostava o companheiro. Abarcavam de antemão o sólido e o líquido, pelo menor preço, e depois talhavam-lhe outro preço a seu paladar. Era o pastel e a coirama das ilhas, a canela, o anil, os bazares e outras veniagas de Ceilão, da China, da Pérsia. Era, cá no reino, a passa, a amêndoa e o atum do Algarve. Era tudo o que vinha importado, os livros, o tabuado, as sedas, as baetas, as telas. Era o que lhe dizia ao compadre. Os atravessadores iam à origem e tomavam por junto essa mercadoria, para em seguida a venderem a retalho em quatro dobros ou mais. Eu fico na minha. Que se faça estanque em solimão, pimenta, pérolas e diamantes, cartas de jogar, perfumes e outros luxos, vá que não vá. Passa-se bem sem essas coisas. Mas que se atravessem as coisas de primeira necessidade, mantimentos e roupas, o próprio pão, e se permita que ricos avarentos sem escrúpulos façam negócio chorudo à custa do povo, isso é coisa que se devia atalhar severamente...

O que devia era pôr-se taxa em todas as mercadorias. Então podia lá ser que uns sapatos, que não chegavam a cinco vinténs ainda há pouco, se tivessem de comprar agora por não menos de dez! Sabe o que lhe digo, compadre? Não basta que os almotacéis vigiem padeiras, regateiras, estalagens e tavernas, se vendem as coisas por justo preço... Se fosse ele a mandar, fazia uma lei com pena capital para quem vendesse por mais que o taxado... Eu prosseguia meu caminho. Um ceguinho, em toada monocórdica, apregoava umas folhinhas toscamente impressas que tinha penduradas de um cordel: olhai a maravilhosa história da imperatriz Porcina, mulher do imperador Lodónio de Roma, em a qual se trata como o dito imperador mandou matar a esta senhora!... Concorriam pessoas a ouvirem, boquiabertas: aqui está a história jocosa dos três corcovados de Setúbal, Lucrécio, Flaviano e Juliano! É só meio vintém cada folheto!..., dizia a mulher que acompanhava o cego. Lede o miraculoso caso, continuava o homem, de Roberto do Diabo que acabou sendo Roberto de Deus, ou o da Princesa Magalona, que, perdida do seu amado, atravessou adversidades e obstáculos sem conta, até reencontrar a felicidade nos braços do marido...

Ajudai o poeta cego Baltasar Dias, gritava a voz esganiçada da mulher, a quem el-rei nosso senhor deu privilégio de caridade para poder imprimir os seus autos e rimances. Olha o auto de Santo Aleixo filho de Eufémiano senador de Roma, e o de Santa Catarina virgem e mártir, e o de el-rei Salamão, e o da feira da ladra! Tudo obras do poeta cego Baltasar Dias aqui presente! Comprai, comprai, que tudo é barato! Custam apenas um vintém os quatro autos!... Olha o auto do nascimento de Cristo e a tragédia do marquês de Mântua, e o auto da malícia das mulheres... Quem quer comprar, quem quer?... Baltasar Dias era um homem dos seus quarenta anos. As suas feições impressionavam pela tez branca como cera, pelo suave sorriso que delineava a comissura dos lábios exangues, pela serenidade interior que dele irradiava e era sublinhada pela ausência de chama e viveza do olhar, pois tinha as pálpebras totalmente cerradas. Conquanto estivesse longe de possuir o sal e o engenho de mestre Gil Vicente, escrevia autos, farsas e pequenas histórias que na sua singeleza agradavam ao povo e que ele próprio vinha, com a mulher, vender pelas ruas e arcadas de Lisboa. Vendia também folhas volantes e obras de outros autores, algumas delas versões em linguagem das que corriam noutras nações, e assim ia angariando o seu sustento.

Ele e a mulher continuavam a apregoar estranhos casos e mirabolantes sucessos de lobisomens e de dragos, de sereias e de homens marinhos e de não sei que mais. Muitas pessoas compravam, dando um pouco de descanso às vozes enrouquecidas dos vendedores. Eu fui um óptimo freguês, como sempre levado pela minha curiosidade e ânsia de ler, já virava costas, com a minha mercadoria, recomeçava a lengalenga: olha o relato verídico do triste naufrágio da nau São Gabriel, que regressava da índia Oriental, e do que aconteceu aos sobreviventes na selva do Cabo!, gritava a mulher, ao passo que a voz calma e lenta do cego anunciava a mui nomeada e agradável égloga chamada Crisfal, que conta os infelizes amores de Cristóvão Falcão ao que parece aludir o nome da mesma égloga». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel, 1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.

Cortesia de Difel/Alfaguara/JDACT

A Arte da Escrita, Fernando Campos, JDACT, Literatura,