A porta do mundo
«(…) Ouviam-se os pregões
cantados dos aguadeiros, das peixeiras, carvoeiros, retalhos de conversas em
que não raro se distinguiam línguas estrangeiras. Dois homens criticavam o
surto de grandes riquezas que apareciam sem se saber como: quem tira todo o
proveito, dizia um, são os que de todas as mercadorias fazem estanques e de um
momento para o outro engrossam tanto! Ora a novidade! Esses eram ladrões
fidalgos!, ripostava o companheiro. Abarcavam de antemão o sólido e o líquido,
pelo menor preço, e depois talhavam-lhe outro preço a seu paladar. Era o pastel
e a coirama das ilhas, a canela, o anil, os bazares e outras veniagas de
Ceilão, da China, da Pérsia. Era, cá no reino, a passa, a amêndoa e o atum do
Algarve. Era tudo o que vinha importado, os livros, o tabuado, as sedas, as
baetas, as telas. Era o que lhe dizia ao compadre. Os atravessadores iam à
origem e tomavam por junto essa mercadoria, para em seguida a venderem a retalho
em quatro dobros ou mais. Eu fico na minha. Que se faça estanque em solimão,
pimenta, pérolas e diamantes, cartas de jogar, perfumes e outros luxos, vá que
não vá. Passa-se bem sem essas coisas. Mas que se atravessem as coisas de
primeira necessidade, mantimentos e roupas, o próprio pão, e se permita que
ricos avarentos sem escrúpulos façam negócio chorudo à custa do povo, isso é
coisa que se devia atalhar severamente...
O que devia era pôr-se taxa em
todas as mercadorias. Então podia lá ser que uns sapatos, que não chegavam a
cinco vinténs ainda há pouco, se tivessem de comprar agora por não menos de
dez! Sabe o que lhe digo, compadre? Não basta que os almotacéis vigiem
padeiras, regateiras, estalagens e tavernas, se vendem as coisas por justo
preço... Se fosse ele a mandar, fazia uma lei com pena capital para quem
vendesse por mais que o taxado... Eu prosseguia meu caminho. Um ceguinho, em
toada monocórdica, apregoava umas folhinhas toscamente impressas que tinha
penduradas de um cordel: olhai a maravilhosa história da imperatriz Porcina,
mulher do imperador Lodónio de Roma, em a qual se trata como o dito imperador
mandou matar a esta senhora!... Concorriam pessoas a ouvirem, boquiabertas: aqui
está a história jocosa dos três corcovados de Setúbal, Lucrécio, Flaviano e
Juliano! É só meio vintém cada folheto!..., dizia a mulher que acompanhava
o cego. Lede o miraculoso caso, continuava o homem, de Roberto do Diabo que acabou
sendo Roberto de Deus, ou o da Princesa Magalona, que, perdida do seu amado,
atravessou adversidades e obstáculos sem conta, até reencontrar a felicidade
nos braços do marido...
Ajudai o poeta cego Baltasar Dias,
gritava a voz esganiçada da mulher, a quem el-rei nosso senhor deu privilégio
de caridade para poder imprimir os seus autos e rimances. Olha o auto de Santo
Aleixo filho de Eufémiano senador de Roma, e o de Santa Catarina virgem e
mártir, e o de el-rei Salamão, e o da feira da ladra! Tudo obras do poeta cego
Baltasar Dias aqui presente! Comprai, comprai, que tudo é barato! Custam apenas
um vintém os quatro autos!... Olha o auto do nascimento de Cristo e a tragédia
do marquês de Mântua, e o auto da malícia das mulheres... Quem quer comprar,
quem quer?... Baltasar Dias era um homem dos seus quarenta anos. As suas
feições impressionavam pela tez branca como cera, pelo suave sorriso que
delineava a comissura dos lábios exangues, pela serenidade interior que dele
irradiava e era sublinhada pela ausência de chama e viveza do olhar, pois tinha
as pálpebras totalmente cerradas. Conquanto estivesse longe de possuir o sal e
o engenho de mestre Gil Vicente, escrevia autos, farsas e pequenas histórias
que na sua singeleza agradavam ao povo e que ele próprio vinha, com a mulher,
vender pelas ruas e arcadas de Lisboa. Vendia também folhas volantes e obras de
outros autores, algumas delas versões em linguagem das que corriam noutras nações,
e assim ia angariando o seu sustento.
Ele
e a mulher continuavam a apregoar estranhos casos e mirabolantes sucessos de
lobisomens e de dragos, de sereias e de homens marinhos e de não sei que mais.
Muitas pessoas compravam, dando um pouco de descanso às vozes enrouquecidas dos
vendedores. Eu fui um óptimo freguês, como sempre levado pela minha curiosidade
e ânsia de ler, já virava costas, com a minha mercadoria, recomeçava a
lengalenga: olha o relato verídico do triste naufrágio da nau São Gabriel, que regressava da
índia Oriental, e do que aconteceu aos sobreviventes na selva do Cabo!, gritava
a mulher, ao passo que a voz calma e lenta do cego anunciava a mui nomeada e
agradável égloga chamada Crisfal,
que conta os infelizes amores de Cristóvão Falcão ao que parece
aludir o nome da mesma égloga». In Fernando Campos, A Casa do Pó, Difel,
1986, Editora Objectiva, Alfaguara, 2012, ISBN 978-989-672-114-5.
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