«(…) Os batuques dos luchazes eram concertos de corações pânicos, taquicárdicos, retidos pelas trevas de galoparem sem controlo na direcção da própria angústia, como, por exemplo, as minha pernas se aproximam a tremer das suas sob o tampo cúmplice da mesa. As órbitas dos tocadores aparentavam-se a ovos cozidos fosforescentes, sem pupila, iluminados pelas fogueiras de palha destinadas a esticar a pele de cabrito dos tambores, ou pelas nádegas que balouçavam, suspensas do nada, à laia das lanternas de um comboio que se afasta. Cada palhora, flanqueada de uma miniatura idêntica destinada ao deus Zumbi, senhor dos antepassados e dos mortos, adquiria os contornos informes da inquietação e do terror, onde nos cabiris somavam os seus latidos de medo ao choro das crianças e aos cacarejos interrogativos das galinhas, pássaros imperfeitos reduzidos a um destino de churrasco. O escuro cavava-se de galerias, de corredores, de degraus que os sons penetravam numa procura desesperada, folheando sombras, deslocando rostos, remexendo as gavetas vazias do silêncio em busca do eco de si mesmos, tal como por vezes nos encontramos, aterrados e surpresos, nos objectos esquecidos nas prateleiras dos armários a lembrarem-nos quem fomos numa insistência cruel. O suor dos corpos, gordo e sumarento, possuía textura diversa das tristes gotas arrepiadas que me desciam a espinha, e sentia-me melancolicamente herdeiro de um velho país desajeitado e agonizante, de uma europa repleta de furúnculos de palácios e de pedras da bexiga de catedrais doentes, confrontado com um povo cuja inesgotável vitalidade eu entrevira já, anos antes, no trompete solar de Louis Armstrong, expulsando a neurastenia e o azedume com a musculosa alegria do seu canto. A essa hora, na minha cidade castrada pela polícia e a censura, as pessoas coagulavam-se de frio nas paragens dos autocarros, a soprarem adiante da boca o vapor de água dos balões das legendas de uma história de quadradinhos que o Governo proibia. Em tronco nu, o meu pai devia barbear-se ao espelho do quarto de banho nos gestos rápidos e precisos do costume, dentro do útero da minha mulher uma criança prestes a nascer socava às cegas as grades de carne da sua prisão, a minha mãe estendia o braço sonolento para o tabuleiro do pequeno-almoço, na grande cama preta que sempre constituiu para mim como que o símbolo do lar. Pensei que nunca soubera de facto mostrar-lhes quanto gostava deles, por timidez ou por pudor, e a ternura tantos anos reprimida trazia-me à boca o sabor amargo do remorso e o desgosto de haver frustrado as suas pequenas esperanças ao transformar a minha vida numa sucessão sem nexo de cambalhotas desastrosas. Planos grandiloquentes, em que Freud, Goethe e S. Francisco de Assis convergiam e se combinavam, começaram a grelar-me na cabeça arrependida, à laia de feijões no algodão molhado das experiências do liceu, milagres de algibeira para Lavoisiers mongoloides: se regressasse vertical, jurava eu a mim mesmo num fervor de peregrino de Compostela, afadigar-me-ia a construir, a partir do meu nada confuso, a digna estátua de bronze do marido e do filho ideais, talhado segundo o modelo das pagelas dos mortos no missal da avó, criaturas repletas de qualidades e virtudes à Santa Teresinha e das quais conhecia apenas os sorrisos resignados. Talvez até que me inscrevesse nos escuteiros a fim de pastorear, de apito, calções e autoridade paciente, um grupo de adolescentes borbulhosos através do Museu dos Coches, ou vagueasse pelas esquinas à cata de anciões de bengala com dificuldade em atravessar. Far-me-ia irmão do Santíssimo, clarinete de filarmónica, coleccionador de dentaduras postiças no intuito de expulsar do insuportável sossego dos serões o meu eterno e deletério desejo de evasão.
Calaria
para sempre a vozinha interior que na cabeça me reclama, teimosa, proezas de
Zorro. E ao termo de dolorosa enfermidade suportada com resignação cristã e
confortado com os sacramentos da Santa Madre Igreja, ingressaria por meu turno na
panteão do missal da avó a juntar-me a uma extensa galeria de chatos bondosos,
apontado como exemplo a netos indiferentes, que considerariam com enfado a
absurda mornidão da minha existência». In António Lobo Antunes, Os Cus de Judas, Editora
Dom Quixote, 2004, ISBN 978-972-202-759-5.
Cortesia DomQuixote/JDACT
JDACT, António Lobo Antunes, Literatura, Cultura e Conhecimento, Escrita,