«(…) Lostris interrompeu a cantiga e sombreou os olhos com a mão para enxergar. Lá estão eles!, gritou, apontando com a mão graciosa. Os outros barcos da esquadra de Tanus espalhavam-se como uma rede pela borda sul da enseada, bloqueando a entrada principal do grande rio e impedindo qualquer fuga naquela direcção. Tanus, naturalmente, escolhera para si a posição norte, sabendo que ali o desporto seria mais ferrenho. Eu desejava que não o fosse. Não que eu seja um covarde, mas sempre tenho de levar em conta a segurança de minha senhora. Ela havia conseguido embarcar no Sopro de Hórus somente após muitas intrigas, em que, como sempre, me envolvera profundamente. Quando seu pai soubesse, como certamente saberia, de sua presença no ardor da caçada, as coisas ficariam feias para mim, mas se também soubesse que eu era responsável por permitir que ela passasse um dia inteiro em companhia de Tanus, nem mesmo a minha posição privilegiada me pouparia da sua ira. As instruções que ele me dera a respeito do rapaz haviam sido inequívocas. No entanto, eu parecia ser a única alma perturbada a bordo do Sopro de Hórus. Os outros vibravam de excitação. Tanus deteve os remadores com um gesto peremptório e o barco deslizou até parar, balançando-se suavemente sobre as águas verdes, tão imóveis que quando espiei sobre a amurada vi meu próprio reflexo olhando para mim. Como sempre, fiquei espantado ao ver como minha beleza havia sobrevivido ao tempo. Meu rosto pareceu-me mais encantador que os lótus azuis que o emolduravam. Mas tive pouco tempo para admirá-lo, pois a tripulação já se agitava. Um dos oficiais de Tanus içou o seu estandarte ao mastro. Era a imagem de um crocodilo azul, com a grande cauda dentada erecta e a mandı́bula aberta. Somente um oficial do calibre dos Melhores dos Dez Mil tinha direito a um estandarte pessoal. Antes de completar vinte anos, Tanus já havia conquistado essa distinção, juntamente com o comando da divisão Crocodilo Azul da guarda de elite do faraó.
O estandarte no topo do mastro
era o sinal para o início da caçada. No horizonte da enseada, o resto da
esquadra estava reduzido pela distância, mas os remos começaram a bater
ritmadamente, erguendo-se e caindo como asas de gansos selvagens em revoada,
reluzentes. Das popas, as inúmeras marolas que criavam espalhavam-se pelas águas
plácidas e permaneciam um longo instante na superfície, como que moldadas em
gesso. Tanus baixou o gongo por cima da popa. Era um longo tubo de bronze, cuja
extremidade ele mergulhou no rio. Quando tocado por um martelo do mesmo metal,
o som agudo e reverberante era transmitido através da água, enchendo de temor
nossa presa. Infelizmente, para minha tranquilidade, eu sabia que o temor
poderia se transformar numa fúria assassina. Tanus riu para mim. Mesmo na sua
excitação, percebera minha preocupação. Para um rude soldado, ele possuı́a uma
perspicácia incomum. Venha até à torre da popa, Taita!,ordenou. Pode tocar o
gongo para nós. Isso afastará sua mente da segurança de seu belo esconderijo
por algum tempo.Fiquei magoado pela sua frivolidade, mas aliviado pelo convite,
já que a torre da popa fica bem afastada da água. Movi-me
dignamente para atendê-lo, sem pressa, mas quando passei por ele fiz
uma pausa para exortá-lo gravemente: cuide da segurança de minha senhora. Está-me
ouvindo, rapaz? Não incentive sua ousadia, pois ela é tão selvagem quanto
você. Eu podia dirigir-me assim a um ilustre comandante dos dez mil porque ele
fora meu aluno, e mais de uma vez eu havia aplicado a vara àquelas nádegas
marciais. Ele sorriu para mim como naquele tempo, arrogante e presunçoso como
sempre.
Deixe a dama em minhas mãos, eu
lhe imploro, velho amigo. Não há nada que eu preze mais, acredite! Não o
censurei pelo seu tom desrespeitoso, pois queria subir logo à torre. De lá,
vi-o apanhar o arco. Aquele arco já se tornara famoso em todo o exército, e
na verdade por toda a extensão do grande rio, das cataratas até ao mar. Eu o
havia criado para Tanus quando começara a se mostrar insatisfeito com as armas
menores que até então lhe haviam sido permitidas. Sugeri que tentássemos
fabricar um arco de algum material novo, que não as frágeis madeiras que
cresciam no nosso estreito vale; talvez madeiras exóticas como o cerne da
oliveira das terras hititas, ou o ébano de Kuch; ou ainda materiais mais
estranhos, como o chifre de rinoceronte ou a presa de marfim do elefante». In Wilbur
Smith, O Deus do Rio, 1993, Editora Ulisseia, 2008, ISBN 978-972-568-604-1.
Cortesia de EUlisseia/JDACT
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