«O rio estende-se pesado pelo deserto, brilhante como metal fundido que houvesse escorrido de uma fornalha. O céu está enevoado de vapor quente e o sol golpeia a paisagem como o malho de um ferreiro. Na miragem, as suaves colinas que bordam o Nilo parecem vibrar sob as marteladas. Nosso barco aproximou-se veloz das moitas de papiros, perto o suficiente para que escutássemos o rangido dos baldes dos shaditf que os equilibram em longas varas desde os campos até à água. O som harmonizava com o canto da garota na proa. Lostris tinha catorze anos. O Nilo havia iniciado a sua última cheia no dia exacto em que a sua lua vermelha feminina florescera pela primeira vez, uma coincidência que os sacerdotes de Hapi haviam considerado altamente propı́cia. Lostris, o nome escolhido por eles para substituir o de baptismo da garota, significava Filha das Águas. Lembro-me dela vividamente naquele dia. Ficaria ainda mais bonita com o passar dos anos, tornando-se mais altiva e imponente, mas nunca mais irradiaria aquele brilho de feminilidade virginal tão impressionante. Todos os homens a bordo, mesmo os guerreiros nos bancos de remadores, estavam cientes dele. Nem eu nem qualquer outro conseguia despregar os olhos da garota. Ela me enchia de uma sensação de insegurança e de um profundo e pungente desejo; pois embora eu seja um eunuco, só fui castrado depois de conhecer as alegrias de um corpo de mulher. Taita, ela me chamou. Cante comigo! Quando obedeci, ela sorriu contente. Minha voz era uma das várias razões pelas quais, sempre que possı́vel, ela me guardava a seu lado; meu tenor completava à perfeição o seu adorável soprano. Cantámos uma das velhas canções de amor camponesas que eu lhe havia ensinado, uma das suas favoritas: meu coração voa qual ave ferida quando vejo o rosto do meu bem-amado e minhas faces brilham como o alvorecer reflectindo o seu sorriso ensolarado...
Da popa, outra voz juntou-se às
nossas. Era uma voz de homem, grave e poderosa, mas lhe faltavam a pureza e a clareza
da minha. Se eu tinha a voz de um pássaro saudando o amanhecer, aquela era a de
um jovem leão. Lostris virou a cabeça e então seu sorriso brilhou como os
raios de sol na superfı́cie do Nilo. Apesar de o homem a quem ela dirigia o
sorriso ser meu amigo, senti a bilis amarga da inveja queimar minha garganta.
Forcei-me a sorrir para Tanus, como ela fazia, com amor. O pai de Tanus,
Pianki, o senhor Harrab, havia sido um dos grandes da nobreza egı́pcia, mas sua
mãe fora uma filha de escravo tehenu
liberto. Como tantos entre a sua gente, ela tivera cabelos claros e olhos
azuis. Morrera de febre dos pântanos quando Tanus ainda era criança, por isso
não me lembro muito bem dela. No entanto, os mais velhos diziam que poucas
vezes se vira beleza como a daquela mulher em ambos os reinos. Por outro lado,
eu havia conhecido e admirado o pai de Tanus, antes que perdesse a sua vasta
fortuna e as extensas propriedades que quase chegaram a rivalizar com as do próprio
faraó. Ele tinha pele morena, olhos de egı́pcio, escuros e vı́treos como
obsidiana polida, um homem com mais força fı́sica que beleza, mas de nobre e generoso
coração, poder-se-ia dizer generoso e confiante demais,
pois havia morrido na penúria, com o coração partido pelos que considerara seus
amigos, só na escuridão, longe do brilho dos favores faraónicos. Tanus parecia
ter herdado o melhor de ambos, com a única excepção da riqueza material. De
natureza e força era como o pai; em beleza puxara à mãe. Então porque
deveria eu ter ciúme do amor de minha ama por ele? Também a amava e, pobre
coisa neutra que eu era, sabia que jamais poderia tê-la para mim, nem que os
deuses houvessem elevado minha posição além da de escravo. Mas tal é a
perversidade da natureza humana que eu almejava o que nunca poderia ter;
sonhava com o impossível. Lostris sentou-se sobre a sua almofada na proa, tendo
a seus pés duas jovens escravas negras de Kuch, esguias como panteras,
inteiramente nuas a não ser pelos colares dourados ao redor do pescoço. A própria
Lostris usava apenas uma saia de algodão alvejado, engomada e branca como a
asa da garça. A pele de seu torso, acariciada pelo sol, era da cor do cedro
azeitado que crescia nas montanhas além de Biblos. Seus seios tinham o tamanho
e a forma de figos maduros, prontos para serem colhidos, e as pontas pareciam pálidos
rubis.
Ela havia retirado a peruca que
usava habitualmente e tinha os cabelos verdadeiros presos de lado, caindo como uma
corda escura sobre um dos seios. O rasgo de seus olhos era realçado pelo
verde-prateado do pó de malaquita, habilmente aplicado às pálpebras
superiores. Seus olhos também eram verdes, mas de um tom mais escuro e transparente,
como o Nilo quando as águas baixam e depositam no fundo a sua preciosa carga
de sedimentos. Entre os seios, pendurada numa corrente de ouro, ela trazia uma
imagem de Hapi, a deusa do Nilo, moldada em ouro e rico lápis-lazúli. Era sem dúvida
uma jóia maravilhosa, que eu mesmo havia confeccionado para ela. Tanus
subitamente ergueu a mão direita com o punho cerrado. Como um só homem, os
remadores interromperam sua cadência e mantiveram as lâminas dos remos no ar,
reluzindo ao sol e respingando. Tanus girou então o leme com força e os homens
do lado do porto enfiaram as pás na água, criando uma série
de pequenos redemoinhos na superfı́cie verde da água. Os de estibordo remaram
com força para frente. O barco girou tão depressa que o convés inclinou-se
num ângulo alarmante. Então os dois lados remaram juntos e a embarcação disparou
adiante. A proa esguia, com os olhos azuis de Hórus pintados num brasão,
afastou a densa vegetação de papiros e o barco singrou para fora da
correnteza, ganhando as águas calmas de uma lagoa». In Wilbur Smith, O Deus do Rio,
1993, Editora Ulisseia, 2008, ISBN 978-972-568-604-1.
Cortesia de EUlisseia/JDACT
JDACT, Wilbur Smith, Literatura, Egípto, Conhecimento,