«(…) Cotten deixou as notas escorregarem dos dedos para o chão do estúdio. Afastou-se do foco das luzes e deixou o local das filmagens dos noticiários. Ninguém a acompanhou. Ninguém se despediu. Ela pensou que nunca chegaria às portas para fugir do horrível silêncio. Do lado de fora, na calçada apinhada de gente, os fotógrafos da imprensa bateram os seus instantâneos, disparando perguntas. Senhorita Stone, é verdade que foi forçada a se demitir? Pretende continuar tentando provar que a Bíblia estava certa com relação à Criação? O que pretende fazer, agora que está desempregada? Cotten avistou Ted Casselman parado ao lado do táxi amarelo. Ele lhe acenou com a mão e, quando ela se aproximou, ele abriu a porta do passageiro. Achei que você não teria ânimo para chamar um táxi, comentou ele. Ela o beijou no rosto. Obrigada por vir. Você sempre foi alguém em quem pude confiar. Já lhe disse antes, você é como uma filha p’ra mim. Cotten acomodou-se no banco de trás e Ted inclinou-se para dentro. Tem certeza de que quer fazer isso?, indagou. Sair de Nova York? Cotten inclinou a cabeça, confirmando. O sul da Flórida me parece a melhor coisa p’ra mim neste momento. Lembre-se, tem amigos aqui. Ela dirigiu-lhe um sorriso apagado e não disse nada. Tudo bem, menina. Você já foi até ao inferno e voltou. Pode fazer o mesmo outra vez, sei que é capaz. Ele beijou-lhe a testa e depois fechou a porta. Enquanto o táxi se afastava, Cotten sentiu a alma afundar no abismo.
Peru.
Um ano depois
Cotten Stone encostou a cabeça na janela fria do avião. A superfície da Terra revelava-se em passagens rápidas, na maioria das vezes encoberta por nuvens espessas. Ela consultou o relógio. Bem na hora. Os seus ouvidos tinham sentido a pressão quando o avião começou a se aproximar do Aeroporto Internacional Jorge Chávez. Como o som de um sapato quando cai, Cotten ouviu o gemido eloquente das rodas quando elas saíram dos seus poços. Fechou os olhos. Lima. Uma nova reportagem. Um novo começo. Depois de um ano sofrido tentando superar a depressão e alguns trabalhos desde o desastre com o falso fóssil, essa seria uma oportunidade de se redimir, ela esperava. Ao ouvir o baque do trem de aterragem acabando de ser montado, Cotten apertou os dedos contra o braço da poltrona. Intelectualmente, ela compreendia as teorias de sustentação e empuxo, mas instintivamente continuava tendo dificuldade em confiar que aquelas forças pudessem fazer voar algo tão imenso e pesado quanto um avião. E depois, controlar a descida sem se projectar contra o chão e se espatifar num milhão de pedaços era outra coisa. Essa apreensão era o que fazia os seus dedos apertarem a borda do descanso de braço. A decolagem e a aterragem eram momentos de oração para ela. Quando a palavra oração se insinuou entre os seus pensamentos, um arrepio tão frio que pareceu mais uma agulhada na base do pescoço a fez estremecer. As lembranças se revolviam nas profundezas da sua mente. Rezar não era algo que fizesse muito. Cotten inspirou fundo pelo nariz e expirou pela boca. Ainda bem que não tinha esquecido de se reabastecer de tranquilizantes antes de partir de Fort Lauderdale..., só por precaução. Controlar a ansiedade por meio da visualização e de exercícios respiratórios sempre funcionava, mas naquele momento a combinação da aterragem do avião com a repentina torrente de lembranças corroía a sua capacidade de concentração.
Cotten remexeu-se no assento,
pousando a mão entre o cinto de segurança e o peito. O aperto do cinto
aumentava a inquietação. A vontade era de arrancá-lo..., para que não a tocasse
nem a prendesse. A ânsia para se levantar e caminhar borbulhava dentro dela e,
caso não a mantivesse sob controle, chegaria ao ponto de explodir. Cotten
encolheu-se no assento e, ao fazê-lo, viu de relance o brilho de luzes
tremeluzindo lá em baixo. Apenas fiapos de nuvens passavam pelo avião enquanto
se aproximavam do solo. Quase
pousamos. Quase pousámos. Se tivesse o maldito tranquilizante no
bolso, poderia tomá-lo. Mas havia deixado os comprimidos na bagagem de mão
guardada no compartimento por acima. Caso se levantasse e pegasse a bolsa, todo
mundo olharia para ela..., alguém poderia até mesmo reconhecê-la. Cotten fechou
os olhos de novo, concentrando-se em respirar e relaxar o corpo, começando
pelos dedos dos pés, pensando em cada músculo, subindo pelo corpo até ao couro
cabeludo. Respirações profundas, lentas, iguais. Inspirando pelo nariz, expirando
pela boca.
As rodas guincharam ao tocar o
solo. O avião balançou duas vezes antes de estacionar suavemente sobre a pista.
O ruído da redução da potência dos motores soou quase como uma serenata maravilhosa
para ela. A respiração de Cotten voltou ao normal e os dedos relaxaram sobre o
braço da poltrona. A região da nuca refrescou-se com a humidade do suor. Ela
afundou no assento, agradecida por ter passado o encantamento, ela preferia
essa palavra a ataque, mas sem saber se o vencera ou se o pouso seguro é que
havia reduzido a tensão a um nível mais controlável. Agora não importava.
Estava no chão. Esse trabalho não era grande coisa, mas era pago como freelance, e a ajudaria a escalar
mais um degrau na escada da respeitabilidade. O desastre no Texas no ano
anterior não lhe havia custado apenas o emprego na emissora, a imagem e a credibilidade,
mas também havia lhe tirado o respeito próprio. Não havia restado quase nada
que pudesse ser aproveitado. Finalmente, ela ouviu o suave toque do sinal de
Apertar os Cintos sendo desligado. Depois de se levantar e pegar a bagagem de mão
do compartimento superior, esperou até o corredor se esvaziar e todos terem
deixado o avião. Pensou em pegar o remédio contra a ansiedade, mas resistiu a
abrir a bolsa». In Lynn Sholes e Joe Moore, O Último Mistério, 2006, Publicações
Europa-América, 2007, ISBN 978-972-105-782-1.
Cortesia de PEuropaAmérica/JDACT
JDACT, Lynn Sholes, Joe Moore, Literatura, Mistério,