De Quando morri virado ao mar
«(…)
Deixei a lagoa pelo meio da manhã, quando o sol limpara já todo o céu. Sobre a água,
que as rápidas aragens mal agitavam, não tinham ficado vestígios da neblina
cerrada que, no amanhecer, cobrira toda a superfície. Valera a pena acordar
cedo e ver o nevoeiro rolar sobre a lagoa em flocos soltos, como se cuidadosamente
o sol os varresse até nada mais ficar entre a água e o céu azul. Arrumei os
petrechos, atirei-os para as costas, e, descalço, comecei a longuíssima
caminhada pela praia fora, entre o bater das ondas e a panorâmica vagarosa das
arribas vermelhas. A maré enchia, mas havia ainda extensas toalhas de areia
molhada e dura, por onde era fácil caminhar. O sol estava quente. De cabeça
descoberta, o corpo um pouco inclinado para compensar o peso da mochila,
marchava em passo certo, como era meu hábito, procurando esquecer-me de que as
pernas me pertenciam, deixando-as viver da sua vida própria, do seu movimento
mecânico. Foi assim que sempre gostei de caminhar, vinte ou trinta quilómetros
sem um descanso, apenas o rápido sorvo na bica de uma fonte, e ala. Também não
parei para almoçar: faltava-me o apetite por tanto sol que apanhara nos dias
anteriores, faltava-me sobretudo a paciência para cozinhar na praia. Limitei-me
a comer duas laranjas que se desfaziam em doçura. Trincava as cascas ao mesmo
tempo que a polpa e cuspia para longe os caroços, como um garoto feliz. Quando
as correias da mochila deram em cortar-me a pele queimada, tirei a camisa, fiz
dela uma rodilha, que acomodei no ombro esquerdo, e ali assentei o peso. Segui
para diante, aliviado das dores. O sol ardia com mais fogo. Sentia-o nas costas
como a palma de uma mão esbraseada, ao passo que começava a nascer e a irradiar
uma espécie de adormecimento na nuca. O suor arrepiava a pele naquele sítio.
Aproximei-me da rebentação e esfreguei a cara, os ombros, a nuca. Atirei
chapadas de água para as costas. A mochila aumentara de peso. Passei-a para o
ombro direito e, tropegamente, a camisa caiu na areia escaldante. Fiquei a
olhá-la, como se nunca a tivesse visto, enquanto as correias me vincavam o
ombro. Cheguei mesmo a dar alguns passos, e foi preciso um grande esforço para
compreender que devia voltar para trás e levantá-la do chão. Senti-me
esquisito, pairando no ar, e esta sensação não me deixou, nem mesmo quando me
sentei e deixei cair de costas. Havia dentro de mim uma náusea um pouco
embaladora que me obrigou a rolar para um lado. O sol estivera a dar-me nas
pálpebras fechadas: entre os meus olhos e o céu havia uma cortina rósea, a cor
delgada do sangue que me corria confusamente dentro do corpo.
Passou-me o rápido pensamento de
que estava a sentir os primeiros efeitos de uma insolação. Inquieto,
levantei-me de golpe, sacudi-me como um cão, e recomecei a caminhada.
Entretanto, a maré empurrara-me para a areia seca, que vibrava sob o calor. Das
arribas vinha o zumbido de milhares de insectos que o sol endoidecia. Nas
pausas da rebentação, a zoada, áspera como um rangido de serra circular,
atordoava-me e acentuava a sensação de náusea que não me deixara. Foram muitos
quilómetros assim. Por várias vezes parei e decidi não dar mais um passo. Mas
logo a ardência me obrigava a levantar-me. Dos lados das arribas, nem uma
sombra. O sol queimava-as de frente agora, e continuava a verrumar-me a nuca.
Perdi a consciência. Andava como um autómato, já sem suor, com a pele sequíssima,
excepto as grossas gotas que se formavam nas fontes e corriam devagar,
viscosas, pelo rosto abaixo. Toda a tarde se passou assim. O sol principiava a
baixar quando atingi a povoação que devia ser a minha primeira etapa. Ali podia
alimentar-me, matar a sede, descansar numa sombra. Mas nada disto fiz.
Calcei-me como num sonho, gemendo com dores nos pés queimados, e meti-me à
estrada, que, em curvas dobradas, subia as arribas. Parei uma vez ainda, meio
perdido, olhando do alto o mar que se mudava numa cor escura. Continuei a
subir, e achei-me fora da estrada, sem saber como, a meter por entre pedras até
à beira da altíssima arriba a pique. O chão inclinava-se perigosamente, antes
de se furtar na vertical. Foi ali que decidi passar a noite. Deitei-me com os pés
para o lado do mar e do desastre, enrolei-me na manta e, a arder da febre do
sol, fechei os olhos. Adormeci e sonhei. Quando tornei a abrir os olhos, o sol
roçava já o horizonte. Que faço eu aqui?, perguntei em voz alta. E foi em
movimentos de pavor que reuni as coisas e voltei à estrada, fugindo. Enquanto andava,
ia pensando que ali eu não era eu, que o meu corpo ficara morto virado ao mar,
no alto da arriba, e que o mundo estava todo cheio de sombras e confusão. A
noite apanhou-me na margem do rio, com uma cidade diante que eu não reconhecia,
como as torres ameaçadoras dos pesadelos. Ainda hoje, tantos anos passados, me
pergunto que vulto de mim terá ficado disperso na brancura das areias ou
imobilizado em pedra na arriba cortada pelo vento. E sei que não há resposta». In
José Saramago, A Bagagem do Viajante, 1969, Editorial Caminho, 1998, ISBN 978-972-212-339-6.
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