«(…) A cozinha desaparecia para dar lugar a uma salinha íntima com móveis caros e quadros pelas paredes e um piano a um canto. Rosália deixava de ter albumina, Maria Cláudia trazia um vestido da última moda. Só Anselmo não mudava. Era sempre o mesmo homem. Distinto, alto, decorativo, um pouco curvado, calvo, e cofiando o pequeno bigode. O rosto parado e inexpressivo, produto de um esforço de anos orientado no sentido de represar as emoções para garantia da respeitabilidade. Infelizmente, eram apenas cinco minutos. Os pés descalços de Rosália acabaram por dominar a cena, e Maria Cláudia foi a primeira a deitar-se. Na cozinha, marido e mulher começaram o diálogo-monólogo de quem está casado há mais de vinte anos. Banalidades, palavras ditas só por dizer, um simples prelúdio ao sono tranquilo da idade madura. Pouco a pouco, os ruídos foram diminuindo, até que ficou aquele silêncio de expectativa que antecede a chegada do sono. Depois o silêncio tornou-se mais denso. Apenas Maria Cláudia continuava acordada. Tinha sempre dificuldade em adormecer. Gostara da fita. No cinema, um rapaz olhara-a muito, durante os intervalos. À saída viera mesmo junto dela, a tal ponto que lhe sentira o hálito no pescoço. Só não percebia porque o rapaz não a seguira. Mais valia não ter olhado tanto para ela. Esqueceu-se do cinema para se lembrar da visita que fizera a casa de dona Lídia. Que bonita era dona Lídia! Muito mais bonita que eu... Teve pena de não ser como dona Lídia. Subitamente, lembrou-se de que vira o automóvel à porta. Ficou sobre brasas, já incapaz de adormecer. Ignorava que horas eram, mas calculou que não devia estar muito longe das duas. Sabia, como toda a gente no prédio, que o visitante nocturno de don Lídia saía por volta das duas da madrugada. Por efeito da fita, do rapaz ou da visita matinal, sentia-se cheia de curiosidade, embora achasse nessa curiosidade algo de censurável e impróprio. Esperou. Minutos depois, ouviu no andar de baixo o ruído de uma lingueta que corre e duma porta que se abre. Um som indistinto de vozes e uns passos descendo a escada. Com cuidado, para não acordar os pais, a rapariga deixou-se escorregar da cama. Caminhando na ponta dos pés, chegou à janela e entreabriu a cortina. O automóvel ficava sempre encostado ao passeio fronteiro. Viu o vulto pesado do homem atravessar a rua e entrar no automóvel. O carro começou a rolar e, rapidamente, desapareceu do campo de visão de Maria Cláudia.
Dona Carmen tinha um modo muito seu de saborear
as manhãs. Não era pessoa que se deixasse ficar na cama até à hora do almoço e
nem isso lhe era possível porque tinha de tratar da refeição do marido e de
arranjar o Henriquinho, mas não lhe falassem em lavar-se e pentear-se antes do
meio-dia. Adorava andar pela casa fora, durante a manhã, por arranjar, os
cabelos soltos, toda ela descuidada e preguiçosa. O marido detestava
semelhantes hábitos, que implicavam com as suas normas de regularidade. Vezes
sem conto tentara convencer a mulher a emendar-se, mas o tempo encarregara-se
de fazer-lhe ver que era tempo perdido. Apesar de a sua profissão de caixeiro
de praça não lhe impor um horário rígido, escapava-se de manhã cedo só para não
ficar indisposto todo o dia. Carmen,
por seu lado, desesperava-se quando o marido se demorava em casa depois do
café. Não que se sentisse obrigada por tal a faltar aos seus queridos hábitos,
mas a presença do marido diminuía-lhe o prazer da manhã. O resultado é que,
para ambos, dia em que isso acontecesse era dia estragado». In José
Saramago, Claraboia, 1953, Editorial Caminho, 2011, ISBN 978-972-212-441-6.
Cortesia ECaminho/JDACT
JDACT, José Saramago, A Arte da Escrita, Literatura,