Porque mataremos e seremos mortos no século XXI
«Um
leve tinir atrás de mim fez com que virasse a cabeça. Seis negros caminhavam em
fila, percorrendo penosamente a senda estreita, Eles avançavam erectos e
devagar, balançando pequenos cestos cheios de terra nas cabeças, e o ruído
acompanhava cada um de seus passos, (...) Eu podia contar-lhes as costelas, as
articulações de seus membros lembravam os nós de uma corda; cada um deles
trazia uma golilha, um anel de ferro soldado ao redor do pescoço, todos
interligados por uma corrente frouxa, cujos elos excedentes pendiam entre eles:
era o seu avanço compassado que fazia com que os elos tilintassem num ritmo
regular, Esta cena, descrita por Joseph Conrad no seu romance Intitulado O
Coração das Trevas, descrevia a época de maior florescência do colonialismo
europeu, distando dos dias de hoje pouco mais de cem anos.
A brutalidade impiedosa, com a
qual os primeiros países industrializados buscavam satisfazer sua fome de
matérias-primas, de terras e de poder, e que deixou as suas marcas sobre os
demais continentes, não é mais aceite pelas condições vigentes nos países
ocidentais. A memória da exploração, da escravidão e do extermínio tornou-se a vítima
de uma amnésia democrática de que estão afectados todos os estados do Ocidente,
que não querem recordar que a sua riqueza, do mesmo modo que o seu poderio e
progresso, foram construídos ao longo de uma história mortífera. Em vez disso,
o que se encontra é um orgulho pela descoberta, observância e defesa dos direitos
humanos, pela prática do politicamente correcto, pela participação em actividades
humanitárias, sempre que nalgum lugar da África ou da Ásia uma guerra civil,
uma inundação ou uma seca compromete as necessidades fundamentais de sobrevivência
dos povos. Determinam-se intervenções militares para ampliar os domínios da
democracia, esquecendo que a maioria das democracias ocidentais foi edificada
sobre uma história de guerras de fronteiras, limpeza étnica e genocídios.
Enquanto se reescrevia a história
assimétrica dos séculos XIX e XX dentro das condições de vida confortáveis e
mesmo luxuosas das sociedades ocidentais, muitos habitantes de países do
segundo e do terceiro-mundo mal suportam ouvir falar em tal história, porque
foram dominados violentamente através dela: poucos dos países pós-coloniais foram
conduzidos a uma soberania estável, muito menos a condições de bem-estar social;
em muitas dessas nações, a história da espoliação continua a ser escrita sob diferentes
disfarces e, em numerosas sociedades frágeis, não se encontram hoje sinais de progresso,
mas sim de maior regressão.
O aquecimento progressivo do
clima, um produto da fome inextinguível por mais energia fóssil dominante nas
terras que primeiro se industrializaram, prejudica com maior rigor as regiões
mais pobres do mundo; uma amarga ironia, que escarnece toda a esperança de que
a vida se possa tornar algum dia mais justa. A capa deste livro mostra o vapor Eduard
Bohlen, antigamente encarregado de serviços postais, cujos destroços permanecem
há quase cem anos recobertos pela areia do deserto da Namíbia. Ele desempenhou
um pequeno papel na história das grandes injustiças. A 5 de Setembro de 1909,
no meio do nevoeiro, o barco encalhou diante da costa do território que na época
se denominava África do Sudoeste Alemão. Hoje em dia, os restos do navio se
encontram duzentos metros terra adentro; durante o século transcorrido, o
deserto se ampliou oceano adentro. O Eduard Bohlen, que percorria desde 1891 a
linha comercial oceânica da companhia Woermann, sediada em Hamburgo,
regularmente transportava correspondência para a África do Sudoeste Alemão.
Durante a guerra de extermínio travada pela administração colonial alemã contra
as tribos Hereros e Namas, serviu ocasionalmente como navio negreiro.
Durante
esta guerra genocida, travada no princípio do século XX, uma boa parte da população
indígena da África do Sudoeste não foi exterminada; foi conduzida a campos de
concentração ou levada para campos de trabalhos forçados, em que os prisioneiros
de guerra eram vendidos como trabalhadores escravos. Bem no começo da guerra, a
administração colonial alemã enviou a um comerciante sul-africano chamado
Hewitt 282 prisioneiros, que foram alojados precariamente nos porões do Eduard
Bohlen, sem que lhes encontrassem melhores possibilidades de acomodação, e com
os quais não se sabia exactamente o que fazer, enquanto os Hereros não fossem completamente
derrotados. Hewitt ficou entusiasmado com essa possibilidade e barganhou para
que o preço fosse reduzido para 20 marcos por cabeça, com o argumento,
considerado justo, de que os homens já estavam embarcados e ele não estava
preparado para pagar pelas mercadorias despachadas ao preço normal, além dos direitos
alfandegários correspondentes. Ele obteve os prisioneiros em condições mais favoráveis
e o Eduard Bohlen partiu do porto de Swakopmund, a 20 de Janeiro de 1904, em
direcção à Cidade do Cabo, na África do Sul, de onde os homens foram enviados
para trabalhar nas minas». In Harald Welzer, Guerras Climáticas, Porque
mataremos e seremos mortos no século XXI, LeLivros, Geração Editorial, 2010, Wikipedia.
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Harald Welzer, JDACT, Clima, Conhecimento,