quinta-feira, 29 de outubro de 2020

O rei que esmorece e a rainha sanhuda: a crise dinástica de 1383-1385 através das emoções nas crónicas de Fernão Lopes. Inês Olaia. «Numa crónica em que as referências ao coração se multiplicam, o de Leonor Teles surge definido como grande…»

Cortesia de wikipedia e jdact

Problemas e Conceitos

«(…) Enfim, a expressão desta emoção faz claramente parte da discursividade política. É mesmo considerada a emoção régia por excelência, da mesma forma que divina, e surge em consequência de um qualquer acto que desafia a potestas. No final da Idade Média, a ira encontra inclusivamente diversos graus de expressão consoante o que a expressa. Em sentido estrito, responde a uma ofensa, uma desvalorização, em público e injusta, relacionando-se de forma próxima com a honra. Importa, no entanto, sempre, medir a sua expressão, que não seja exagerada. A ira, por sua vez, inspira medo. Mas medo, temor e receio são três palavras que designam variações do mesmo tema, ou assim parecem, e articulam-se estreitamente com a legitimidade do governo. De facto, parece certo na historiografia que faz parte do governo (rulership) a necessidade de se fazer respeitar e amedrontar (to be feared), incutindo terror no que lhe está subordinado. A ira régia, de que falávamos acima, tem precisamente essa como uma das suas funções.

O medo e a sua relação com a figura régia na Castela do século XIV foi já alvo de estudo e dele partiremos para tentar aduzir algumas ideias que nos podem ser úteis. As Partidas de Alfonso X surgem-nos como ponto de partida. É aí que se encontra a noção fundamental da diferença entre temor e medo. O temor tem a raiz no amor: teme-se, portanto, a quem se deve amar, Deus e o soberano. O medo como tal radica no espanto. E aqui encontramos problemáticas delicadas de tradução e interpretação tanto da bibliografia como das fontes. O medo, com raiz latina em metus e de que deriva o verbo amedrontar, e o temor, com origem em timor e de que deriva o verbo temer, são coisas muito diferentes, embora tendamos a usá-las quase da mesma forma. Por vezes, o medo está relacionado com a protecção da integridade física e da honra daquele que o sofre. Nas crónicas castelhanas, o medo parece funcionar como meio de legitimar e encenar rupturas para depois restabelecer a normalidade a partir de fora, variando na prática com o momento político. É o mesmo artigo de François Foronda que nos chama a atenção para a polarização clássica do poder régio medieval: o polo positivo como rei/amor/temor e o polo negativo tirano/espanto/medo. O uso de qualquer um destes termos pelo cronista Fernão Lopes é delicado: muitas vezes misturam-se e sobrepõem-se. Para complicar, a língua portuguesa junta um terceiro termo a estes dois polos: o receio, que se parece com uma variante mais suave do medo.

A estes dados, podemos ainda juntar um outro: e como é que as mulheres e os homens se distinguem neste campo? Havia uma diferença na percepção e na expressão de emoções entre os dois géneros? A resposta curta é: sim. Quando há mulheres em patamares de poder, estas têm à disposição o mesmo tipo de instrumento de comunicação que qualquer homem. No entanto, parece que a cronística tende a mostrar desagrado quando isso acontece, preferindo reservar-lhes os papéis ditos tradicionais. Em si mesmas, no entanto, as emoções políticas não têm género, mesmo que as mulheres da aristocracia tenham acesso a uma paleta de emoções muito mais restrita. O facto é curioso, tendo em conta que a sociedade medieval faz, das mulheres, seres mais emotivos por natureza.

A sanha, o amor e o desequilíbrio: Leonor e Fernando

No final da Idade Média, a teorização política apresenta-se muito ligada à metáfora do corpo: transpõe a visão teológica da Igreja como corpo místico de Cristo, ligando assim o rei ao reino como Cristo à Igreja. A concpção orgânica e pessoal do governo coloca a compleição e o temperamento do monarca sob escrutínio, tal como a sua relação com o corpo que é o reino. Ao coração dá-se um particular destaque, definindo-se pelo lugar das emoções o próprio monarca. Foi aí, no coração, que a medicina florescente nos séculos XII-XIII localizou as emoções. Na verdade, chega mesmo a considerar-se que as emoções são os movimentos da alma, que se manifestam somaticamente no coração. À luz do tempo, portanto, todas as emoções sem excepção por lá passam. E que dizer do tamanho do coração de um grande senhor? Numa crónica em que as referências ao coração se multiplicam, o de Leonor Teles surge definido como grande, justificando as suas acções/emoções fora do comum, e caracterizado como vingador. Em qualquer uma das crónicas que falamos, as emoções da rainha parecem muitas vezes excessivas, desregradas ou mal ritualizadas. Mas se assim é, aquelas que o rei Fernando expressa por ela estão em patamar similar.

Por tudo o que expusemos, é lógico que a ira seja uma das emoções mais amplamente expressas na generalidade. A surpresa surge quando, analisando a Crónica de D. João I, é a rainha Leonor Teles que domina as referências à sanha em toda a Primeira Parte, quer seja porque a emoção é sentida e expressa por ela, quer esteja apenas no seu entorno directo. Sofre-a e a ela ninguém podia fazer nojo, porque sofreria rapidamente a sua sanha. Esta consideração de Fernão Lopes obriga-nos a retomar a necessidade de a ira régia ser moderada. O desregramento que aponta a Leonor Teles é mais um factor que contribui para justificar a sua queda. Notemos que Fernão Lopes equipara, na primeira ocasião que citámos, o ódio que pede vingança ao amor que não descansa enquanto não alcança quem quer. Em ambos a rainha se viu ou vê enredada. A ira implica, directamente, a emoção seguinte que aqui abordamos na relação com Leonor Teles: o medo». In Inês Olaia, O rei que esmorece e a rainha sanhuda: a crise dinástica de 1383-1385 através das emoções nas crónicas de Fernão Lopes, Revista Medievalista nº 27, Janeiro-Junho 2020, ISSN 1646-740X.

http://www2.fcsh.unl.pt/iem/medievalista/MEDIEVALISTA27/olaia2701.html,

Cortesia de RMedievalista/JDACT

Inês Olaia, História, Caso de Estudo, Cultura e Conhecimento, Literatura,