«Cleyde dormia de dorso sobre o enxergão do catre. Estremunhada por um impulso inconsciente, abriu os olhos. Nódoas cinzentas, que se disseminavam no tecto e nas paredes do quarto pequeno, amorteciam mais a claridade matinal que atravessava o vidro empoeirado de uma clarabóia. A esperança de uma vida nova foi também quebrantada pelo desânimo que estava consumindo sua alma desde o acometimento que a infelicitara no seu último emprego. Lembrou-se da casa do dr. Waldomiro. Às cinco da manhã já estava de pé, movida pelos repetidos gritos de dona Creuza, que a chamava para preparar o pequeno-almoço. Acorda, menina! Dormes muito! É por isso que estás preguiçosa! Cleyde se levantava e banhava o rosto no pequeno lavatório. Olhava-se no espelho. Seus olhos, recobertos pelas pálpebras intumescidas, tinham a cor das águas-marinhas; ela se orgulhava deles. Depois de fazer o asseio pessoal e a simples maquiagem, colocava o avental branco para iniciar a rotina dos afazeres enfadonhos. Sua mente estava limitada por essas actividades. Para ela, a manhãs eram as mesmas dos dias passados. Bom dia, dona Creuza, estava indisposta, por isso não lavei a louça; mas é pra já! Ela resmungava para si: ah, a minha patroa é muito exigente! Lembrou-se que certa noite, o dr. Waldomiro, encontrando-a casualmente dentro de casa, inesperadamente a puxara pelo braço, e disse: depois que ela morrer, vou casar contigo! O dr. Waldomiro era funcionário aposentado da Alfândega.
Ele
controlava a importação de insumos diversos, bens de consumo, equipamentos
eletrónicos e automóveis de luxo. Recebia elevadas propinas para deixar passar
ilegalmente muitos desses produtos valiosos. Nos leilões, os carros
contrabandeados eram vistos sem uma das portas, sendo arrematados por um preço
muito aquém do valor real por alguém aparentemente desinteressado nessa falta.
Depois do leilão, o dono do carro recebia a porta, que era colocada em alguma
oficina. A compensação pecuniária para o dr. Waldomiro vinha breve. Assim, ele
enriquecia à vista de todos com a conivência das autoridades superiores entre
as quais estava o representante do Governo, que, segundo diziam, era um
sibarita impudente e corrupto. Depois de aprontar o lauto pequeno-almoço,
Cleyde continuava na preparação do almoço.
O dr. Waldomiro chegava a casa
por volta do meio-dia. Cleyde, arruma a mesa!, gritava Creuza. Depois do banho,
ele vinha sentar-se à mesa, ocupando a cabeceira desta. À sua direita ficava
Creuza; ao lado desta, a jovem Zoraia. E à sua esquerda, o Ricardo, sempre atirado
quando via Cleyde. Creuza segurava um pequeno sino de prata e, com um gesto calculado,
dobrava o mesmo, avisando a Cleyde que já deveria trazer o almoço. Às vezes, quando
ela virava a cabeça para falar com a filha, o dr. Waldomiro aproveitava a oportunidade
para acariciar a coxa de Cleyde, que permitia essa licenciosidade com medo de
perder o emprego, ou, talvez, porque se lembrava da promessa do velho
desbriado.
Após o almoço, ela continuava a
rotina diária com a limpeza dos três carros contrabandeados, mas já
legalizados, que ocupavam uma garagem do tamanho de uma casa média. Após o
jantar, continuava em actividade na preparação da ceia. Quase todas as noites o
dr. Waldomiro recebia visitas, o que prolongava o trabalho dela até alta hora
da noite. Depois, já extenuada, só lhe restava ir para a cama na qual repousava
o seu belo corpo de mulher já feita. Como vivia em casa de família, só tinha
folga parcialmente aos domingos. Cleyde tinha dezoito anos. Ela nascera de uma
família de empregadas domésticas, dessa espécie de família que abunda neste
vasto país, indolente pela própria natureza, mas cheio de esperteza marota;
esse tipo de família da qual a prole fecunda vem da pobreza que lhe permite de
graça, entre os poucos prazeres, o pequeno espaço de uma cama. Novas gerações
vêm com a mesma sina, sujeitas, quem sabe, ao inexorável jogo da competição. Hoje,
eu vou procurar um novo emprego, ou aceito a proposta daquela mulher?, pensou ela,
ainda com os olhos fixos no tecto do quarto. Não tenho coragem para fazer isso!
Mas eu também poderia ir à casa do dr. Waldomiro e exigir meus direitos. Aquele
canalha do filho dele ainda vai-me pagar! Preciso ter coragem! Ele precisa reparar
isso!
Cleyde era, de certo modo, uma
excepção entre a maioria das pessoas da sua classe. Observe o leitor o seu nome
próprio. Seus pais lhe deram esse nome, talvez, tirando-o de algum almanaque,
ou, talvez, tomando-o das personagens de novelas ou filmes. A mesma coisa se
poderia dizer da sua fala. O dr. Waldomiro se admirava das expressões quase correctas
dessa moça que, provavelmente, viera de uma família sem a necessária escolaridade.
Escuta, Cleyde! Algum dia ainda vou-te amparar. Você é tão bonita! Minha mulher
é uma megera!, sussurrava ele ao ouvido dela, ocasionalmente. Talvez ele fosse sincero
com ela. Suas trapaças eram extradomésticas e, sobretudo, ligadas ao
contrabando». In LS Ferreira, Sedução Fatal, CDD 869.93, Paka-Tatu, 2005, ISBN 85-8-794-572-6.
Cortesia de PakaTatu/JDACT
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