Lanhoso, Março de 1120
«(…) Os seus perceptores
compreenderam a preocupação, mas Paio Soares revelou-se intransigente: jamais
colocaria as suas tropas em risco nos arrabaldes de Lanhoso! Porém, e por mais
veementes que fossem os seus argumentos, não convenceram o jovem príncipe.
Enervado, o rico-homem da Maia amuou e declarou que, se não seguiam os seus
conselhos, não valia a pena perder tempo. Na verdade, o que ele tinha era um
medo fantasmagórico de dona Urraca, e por isso escolheu afastar-se mais uma vez
para a sua Maia. Exaltado, saiu pela porta da torre de menagem e gritou: Ramiro,
preparai o meu cavalo!
Naquela primeira vez que o vi,
Ramiro era um jovem franzino, da mesma idade do que o príncipe. Filho bastardo
de Paio Soares, encolhia-se na sua presença, pois era tratado com dureza. Ao
chegar perto do cavalo, que o filho não conseguia acalmar, o pai gritou-lhe: sois
um tolo, dai cá isso! Montou em dois tempos o seu alazão e olhou com desprezo
para o bastardo, que logo correu atrás. Todos tivemos pena dele, tão mal
vestido e humilhado em público. Mas logo o príncipe nos relembrou os seus
desejos, dizendo, sempre voluntarioso: vamos para Lanhoso! Ao princípio da
noite, uma pequena comitiva chegou à povoação, já cercada por dona Urraca e
Gelmires, e foi necessária a intervenção de Fernão Peres Trava para que fosse autorizada
a nossa entrada no castelo. Já na presença de dona Teresa, que ceava, o Trava
revelou a sua profunda desilusão com os portucalenses. Onde estão as nossas
tropas?, perguntou, indignado. Os irmãos de Ribadouro explicaram que haviam
considerado mais prudente deixá-las em Guimarães, defendendo a cidade, e que
Paio Soares temera vis emboscadas em redor de Lanhoso, preferindo regressar à
Maia com os seus homens. Deixam a vossa rainha à mercê da irmã?, enfureceu-se o
Trava.
Também Bermudo considerou aquela,
uma traição indigna, e os irmãos Trava só atenuaram a sua fúria ao saberem que
fora o príncipe que forçara a comitiva a vir ajudar a mãe. Ao menos, alguém
corajoso!, exclamou Fernão Peres. Para espanto dos presentes, dona Teresa
considerou uma tolice o príncipe ter vindo a Lanhoso, pois não só arriscava a
própria vida, como o fazia sem tropas, não auxiliando a mãe em nada. Urraca
pode, de uma assentada, matar-me a mim e ao meu filho! Mirando Afonso
Henriques, em cuja cara se pressentia a desilusão com a reacção maternal,
perguntou-lhe: não vos avisei já para não lutardes com mulheres?
Agrestes com os portucalenses, dona
Teresa e seu amante logo nos dispensaram, atribuindo-nos uns quartos numa
habitação secundária da alcáçova, e provavelmente nenhum de nós teria sabido da
surpreendente intriga que veio a urdir-se, não fosse a minha prima Raimunda ter
revelado, mais uma vez, as suas habilidades de espia, e escutado uma inesperada
e improvável conversa que aconteceu nessa noite.
Começara a chover e só as
sentinelas não se haviam recolhido, quando alguém abriu a ponte levadiça a um
solitário cavaleiro, deixando-o entrar sem sequer retirar o capuz. Era dona
Urraca, a quem sua irmã enviara uma mensagem secreta, alegando que deviam
parlamentar. Embora bulhassem constantemente, nos intervalos dessas polémicas
as duas irmãs davam-se bem. Sempre que podiam encontravam-se em segredo, longe
dos seus conselheiros, e decidiam livremente o que desejavam. Em Lanhoso,
repetiram o costume familiar e, para não serem vistas, desceram às masmorras
vazias e frias. Iluminada apenas pela chama de dois archotes, Urraca parecia
envelhecida por tantas guerras e zangas, ora com o marido, Afonso I de Aragão,
ora com o filho, ora com a irmã, ora com os incontáveis amantes com quem
folgava. Imprevisível, inquieta e turbulenta, não era dotada para o governo dos
seus reinos, e muita da balbúrdia que consumia a Hispânia nascia das vibrações drásticas
daquele útero inconstante, daquela alma atormentada e daquela inteligência
fogosa, mas limitada. Talvez por isso, notavam-se já nela muitas rugas, cabelos
cinzentos, tremura nas mãos e um ligeiro arfar nos enfraquecidos pulmões.
Sem
lhe dar tempo para pensar, dona Teresa alegou que a irmã fora conduzida para
uma armadilha. Lanhoso era um castelo inexpugnável, resistiria meses ao cerco,
e as tropas portucalenses, que estavam a ser reunidas em Guimarães, em breve
fustigariam os flancos das dela, desgastando-as até à exaustão. Estes
desfiladeiros são mortais, garantiu dona Teresa. Não só notara que a irmã
desconhecia a agressiva geografia do local, como que parecia esgotada por
semanas de combates e saudosa do seu actual amante, um nobre castelhano
qualquer. Por isso, dona Teresa acrescentou sem piedade: o Gelmires vai
trair-vos. Amanhã vai retirar as suas tropas, e deixar-vos à minha mercê! O exército
que cercava Lanhoso era vasto, deveria contar talvez cinco mil homens, mas
desses apenas metade eram os leoneses e os castelhanos de dona Urraca, os
outros eram galegos e pertenciam ao arcebispo de Compostela. Se estes
retirassem, a vantagem numérica de dona Urraca face aos portucalenses diminuía
muito. A ira fez a rainha parecer ainda mais envelhecida e alucinada. Pode lá
ser, o Gelmires ressona na sua tenda!, exclamou». In Domingos Amaral, Assim Nasceu
Portugal, Por Amor a uma Mulher, Casa das Letras, LeYa, 2015, ISBN 978-989-741-262-2.
Cortesia de CdasLetras/LeYa/JDACT
JDACT, Domingos Amaral, História, Literatura, A Arte,